segunda-feira, 19 de outubro de 2009

'É preciso elevar o padrão ético'

Gilberto Velho critica Lula por defender aliados suspeitos de atos ilícitos
ENTREVISTA (por Cláudia Lamego)
Ao defender aliados envolvidos em escândalos e investigados por crimes, o presidente Lula legitima um padrão ético e moral discutível no país. A opinião é do antropólogo Gilberto Velho, que criticou ontem Lula por relativizar supostos crimes praticados na República. Para ele, é preocupante, num “país que vive uma crise de valores”, que Lula minimize a prática de atos ilícitos. Segundo o antropólogo, as declarações de Lula são movidas por seus interesses políticos. “Tudo em nome de um projeto político e pessoal”, lamenta.
O GLOBO: Depois de pedir ao Ministério Público que tenha cuidado com o a biografia dos investigados, o presidente Lula disse ontem que é preciso relativizar os crimes. O que o senhor achou dessa declaração?
GILBERTO VELHO: Para começar, não cabe ao chefe do Executivo orientar os outros poderes sobre como eles devem proceder. Isso é preocupante com relação à distribuição do poder no país. Ele não pode ir à posse do procurador-geral e orientar o trabalho dos procuradores. A outra questão é que, ao minimizar faltas graves dos aliados, ele está legitimando um padrão moral e ético que é no mínimo discutível. O que está se propondo é que tudo seja investigado, não está se condenando com antecedência. Agora, houve uma série de episódios nos quais não havia dúvida sobre faltas e ilegalidades, e ele, mesmo assim, defendeu. Qual é o padrão moral que está sendo sugerido pelo presidente? É de um pragmatismo... não sei como classificar isso. É algo como a idéia de que é possível minimizar meios ilícitos, que são condenáveis sob qualquer perspectiva ética mais séria e conseqüente.
O GLOBO: O presidente dá mau exemplo ao defender suspeitos de atos ilícitos?
GILBERTO VELHO: Sim. Não é isso o que se espera de um chefe de Estado, que tem força e popularidade grandes, num país que vive uma crise de valores imensa. É um pouco decepcionante que ele não esteja demonstrando preocupação com a corrupção, sobretudo quando seus interesses políticos são prejudicados. É lamentável que ele confunda seus interesses com os do país. Tudo em nome de um projeto político e pessoal.
O GLOBO: Num país com tanta impunidade, qual o impacto desse tipo de conduta do presidente?
GILBERTO VELHO: Há muito tempo venho chamando atenção sobre os deslizes, irregularidades, falta de responsabilidade e de compromisso com a verdade no nosso país. Aí, vem o presidente e minimiza tudo. Ele, como pessoa, pode ter suas opiniões, e podemos discordar delas. Mas, falando como chefe de Estado, é preciso elevar o padrão ético do país. A pergunta que temos que fazer é: é importante ou não que os governantes pautem seus comportamentos pela ética? No fundo, funciona aqui ainda a máxima de que os fins justificam os meios. Achar que vale tudo porque é melhor para seu grupo ou partido é muito assustador.
O GLOBO: E quando o presidente aparece ao lado de políticos que ele mesmo já condenou no passado, como o senador Fernando Collor?
GILBERTO VELHO: Como é possível ele aparecer abraçado com o Collor, com o Renan, com o Jader Barbalho? O país se mobilizou contra o Collor, que foi eleito agora pelo clientelismo. E Lula se alia a esse clientelismo mais atrasado. Então, o presidente passa uma esponja sobre tudo o que aconteceu e toda aquela mobilização da população não tem mais valor? É muito triste.

PUBLICADA EM “O GLOBO”, 24/07/2009.

O BAILE E A CIDADE

Gilberto Velho*
Um dos principais desafios da vida na grande cidade contemporânea é o convívio das diferenças. Vivemos em metrópoles complexas, diferenciadas, com múltiplos estilos de vida, gostos e costumes. Os exemplos são infindáveis e passam por trabalho, religião, origem regional, preferências políticas, esportivas, lazer em geral, etc. A questão do funk volta à tona com a retomada de antigas acusações que o associam à criminalidade e à violência. Por outro lado, hoje existe um movimento cultural que defende e valoriza o funk não só como música, mas como estilo de vida, atitude e expressão artística. Certamente, uma política exclusivamente repressiva e policial está condenada ao insucesso e só acirrará tensões e conflitos sociais. Parece inquestionável que existem situações em que criminosos estão presentes nas festas funk, eventualmente patrocinando-as. Caso existam situações de violência e crimes, cabe à polícia investigar e, caso comprovado, tomar providências. Mas a generalização apressada e simplista significa desqualificar, estigmatizando todo um conjunto de manifestações associado ao lazer, à festa, e à sociabilidade de boa parte da população do Rio de Janeiro.No entanto, também é indiscutível que há um problema de convivência entre o horário e o som poderoso desses bailes em relação as suas vizinhanças, seja dentro ou fora das comunidades. Diariamente, lemos nos jornais cartas de leitores com reclamações quanto à impossibilidade de repouso e sono de milhares de pessoas prejudicadas pelo total desrespeito às normas básicas de convivência. Nos fins de semana isso fica mais evidente. Na sexta-feira, por exemplo, milhares de moradores de Copacabana e Ipanema são obrigados a ouvir em alto volume o som que vem dos morros.
Normalmente, começando por volta das dez horas da noite, isso se prolonga até seis horas da manhã. Parece-me um caso exemplar para buscar formas de diálogo e de aperfeiçoar nossos padrões de cidadania com pretensões à civilidade. É claro que a solução não é uma operação policial com armas pesadas mas passa, necessariamente, pela ação do poder público. Este deveria desempenhar o papel de mediador entre os freqüentadores e patrocinadores dos referidos bailes e os moradores de suas vizinhanças para se chegar a algum tipo de acordo e negociação. Diga-se, de passagem, que o desrespeito à lei do silêncio não é exclusivo dos bailes funk, mas acontece, por exemplo, nos famosos plays de prédios de classe média, embora sem a mesma intensidade e freqüência. Agora mesmo, no período de festas juninas, aceitou-se como normal os estouros de bombas e foguetes por parte de petizes estimulados por seus devotados pais e avós. Existe, assim, um problema geral de falta de civilidade e capacidade de convivência e respeito mútuo dentro de nossa cidade.
Os bailes funk, sem dúvida, como estão transcorrendo hoje, constituem um problema de convivência com vizinhos que simplesmente querem dormir e se recuperar de suas atividades rotineiras. Mas é fundamental que para lidar com essa questão não se retorne a um padrão meramente repressivo e policialesco. Se há crime e violência comprovados, providências têm de ser tomadas pela autoridade policial. O grande avanço seria estabelecer canais de comunicação e de diálogo que permitissem que as diferenças fossem respeitadas sem que fossem agressões de um grupo contra outro.
* Antropólogo
PUBLICADO EM "O GLOBO", 20/07/2009, p. 7.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

RUTH CARDOSO

Gilberto Velho*


Está completando um ano do falecimento da doutora Ruth Cardoso. Era pessoa sóbria e discreta, avessa a homenagens. Portanto, relembrá-la é, sobretudo, sublinhar seus estilo e atitude que são cada vez mais raros em uma sociedade em que o exibicionismo e o auto-elogio são moeda corrente. Vive-se o espetáculo do mau gosto e do oportunismo, em contraste com o trabalho e generosidade de Ruth Cardoso que produziam resultados, sem maiores estrépitos e foguetórios. Como acadêmica, sempre se distinguiu pelo respeito às obras realizadas e, paralelamente, pela curiosidade e estímulo ao novo e à ousadia. Isso não impedia que sustentasse pontos de vista, exercesse a crítica, preocupada com o diálogo em que a civilidade não se opunha à firmeza.
Sempre esteve voltada para questões de política social, sem abrir mão de rigor acadêmico. Orgulhava-se de sua vivência universitária, mas isto jamais a impediu de estar atenta e engajada nas grandes questões políticas, como a resistência contra a ditadura. Estudou e participou de movimentos em defesa de minorias e setores oprimidos da sociedade. Entre outras causas, há que destacar a sua atuação na política de gênero e o seu engajamento nas lutas das mulheres.
Como esposa de presidente da República, reinventou o papel oficial, desempenhando tarefas em que sua condição de cientista social e cidadã engajada contribuiu, decisivamente, para inovações e fortalecimento de políticas sociais. Prosseguiu essas atividades de outras formas, uma vez encerrado o mandato de Fernando Henrique Cardoso. Até sua morte, permanecia atuante, construindo instrumentos para enfrentar a pobreza e a desigualdade social.
Deixou exemplos e lições. Quem a conheceu e acompanhou sua trajetória gostaria que, de algum modo, essa memória permaneça viva, se contrapondo à vulgaridade da corrupção, do imediatismo e da mesquinharia política.


*Antropólogo

VIOLÊNCIA E IMPUNIDADE

Gilberto Velho*



Nos últimos dias a cidade do Rio de Janeiro viveu mais alguns episódios assustadores de violência que se somam a tantos outros nos últimos anos. O novo assalto e a agressão a Marcelo Yuka, o casal sendo arremessado da Avenida Niemeyer, depois de ser seqüestrado e alvo de repetidas agressões, universitários baleados, confirmam que continuamos vivendo uma situação de insegurança e vulnerabilidade.


Não há como desprezar as características individuais que tornam alguns bandidos, especialmente cruéis e sádicos. Pessoas são assaltadas, roubadas, agredidas e, mesmo sem reagir, freqüentemente, são assassinadas com requintes de brutalidade. “Tribunais do crime” podem até atuar contra criminosos que ultrapassem ou quebrem regras do jogo, confirmando o poder exercido pelas redes e gangues de bandidos. No entanto, é preciso enfatizar, mais uma vez, que o fenômeno que estamos enfrentando é o do desenvolvimento incontrolável de uma cultura da violência. Esta é produto da combinação de diversas variáveis, como a desigualdade social, a desordem urbana, a corrupção de órgãos públicos, a ineficiência e cumplicidade de setores da polícia com o próprio crime e a ausência de políticas sociais contínuas e sérias como na escandalosa situação da área da saúde. Por mais que já tenha sido analisado e denunciado, um dos pontos focais, talvez o principal, seja a falência da educação, particularmente a pública. As péssimas condições de trabalho dos professores e a precariedade material produzem um ensino totalmente inadequado para dar um mínimo de esperança e condições de sociabilidade para a maior parte da população pobre do país. No Rio de Janeiro, isto é flagrante e são mais do que conhecidas as histórias de situações que inviabilizam o funcionamento minimamente razoável de escolas de ensino básico e médio.


Não há dúvida de que o que se passa na nossa cidade e no nosso estado depende, em grande parte, do governo federal, da sua incompetência e falta de vontade de empenhar-se com vigor para debelar ou, pelo menos, melhorar situação tão dramática que, entre outras conseqüências, reflete-se na cultura da violência. Esta é fomentada nas favelas, na periferia e nas próprias escolas. Não nos iludamos alocando todos esses problemas às camadas mais pobres da sociedade. Embora estas vivam de modo mais intenso e rotineiro o aprendizado da crueldade na vida cotidiana, também em camadas médias e elites temos múltiplos exemplos, entre jovens, de demonstrações de irresponsabilidade social e indiferença humana. Já são numerosos os episódios de brutalidade exercida por filhos de famílias de quem poderia se esperar um compromisso ético elementar.


Todos os fenômenos na vida social, de alguma maneira, se ligam uns aos outros. É impossível ignorar que a impunidade pública de infratores e criminosos, incluindo políticos e personagens notórios contribui para o quadro geral de descrença dos valores básicos de cidadania. Este fenômeno continua sendo um dos principais desafios para a construção da democracia em nosso país.


* Antropólogo



PUBLICADO EM O GLOBO, 12/03/2009.

A IMAGEM DO EXÉRCITO

Gilberto Velho*

O trágico episódio do Morro da Providência, além da brutal violência que se soma a tantas outras, traz à tona uma questão fundamental para a frágil democracia brasileira – o lugar das Forças Armadas. Não só o Exército, mas a Marinha e a Aeronáutica, ficaram com suas imagens gravemente conspurcadas pela atuação de seus órgãos de segurança durante o regime militar, produto de uma conspiração que uniu setores militares com variados grupos da sociedade civil. O pior nesse período foi a ação desencadeada pelos famosos “setores radicais” que, com o beneplácito de alguns oficiais-generais, permitiram que oficiais de diversas patentes comandassem operações que envolveram seqüestros, tortura e assassinatos. Isto não significa que ignoremos que setores mais radicais de oposição ao regime militar, também possam ter utilizado métodos truculentos e extremamente agressivos. No entanto, os militares de que falamos, utilizaram recursos, instalações, armas e todo um sistema oficial como pano de fundo, para implementar medidas repressivas que ultrapassavam qualquer limite de ética e de civilidade. Sabemos, também, que grande parte do oficialato não foi cúmplice dessas ações e muitos, inclusive, as condenaram. O fato é que além da pressão da sociedade civil e de outros países e agencias internacionais, houve uma reação a partir das próprias Forças Armadas, especialmente no período do Governo Geisel, para controlar as ações violentas que rompiam não só com a democracia, mas com os próprios princípios da hierarquia militar. É, pelo menos, discutível que torturadores e assassinos não tenham sido julgados. Mas há uma série de argumentos em torno da idéia de uma anistia “ampla, geral e irrestrita”.
Com a volta dos governos civis, houve uma lenta e progressiva mudança das atitudes e postura dos representantes das Forças Armadas. Cada vez mais pareceu haver uma nova concepção de suas relações com a sociedade civil e com os valores democráticos em geral. Progressivamente, foi se restabelecendo uma imagem mais positiva e respeitável em que as ações construtivas, filantrópicas, de apoio social, de socorro a emergências e catástrofes, participação em obras de interesse nacional melhoraram significativamente a imagem dos militares perante a opinião pública. Assistimos, inclusive, a significativos gestos de reconciliação e reaproximação com a sociedade civil.
Portanto, uma ação criminosa comandada pro um oficial do Exército, em circunstâncias, no mínimo chocantes, põe em cheque essa imagem lentamente reconstruída. Pergunta-se como é possível haver uma quebra na hierarquia de comando que permite a uma pessoa que está sendo rotulada de “desequilibrada” desencadear um processo tão monstruoso que levou ao massacre e morte de três jovens. Esse argumento já foi utilizado em outros tempos. Não há como tentar disfarçar e dizer que a instituição não foi atingida por uma ação isolada. É necessário que isso seja comprovado de modo exemplar para permitir até que, ao repensar a gravidade da situação de segurança pública no Brasil, possa ser encontrado um lugar adequado para as Forças Armadas.

* Antropólogo

PUBLICADO EM O GLOBO, 30/06/08.

JUVENTUDE E VIOLÊNCIA

Gilberto Velho*

O que pode haver de comum entre jovens brancos de elite mortos num acidente automobilístico e jovens negros mortos em combates entre facções criminosas ou em embates com a polícia? Obviamente, a resposta imediata é que são todos jovens, entendendo-se por isso uma faixa etária que varia, imprecisamente, entre 15 e 24 anos. No trágico acidente da Lagoa as idades das vítimas variavam entre 17 e 21 anos. Na espécie de guerra que se trava nos morros e periferias das grandes cidades brasileiras, especialmente no Rio de Janeiro há, freqüentemente, adolescentes ou mesmo o que estamos acostumados a classificar de crianças. Já é rotina o envolvimento de meninos de 12, 13 anos nas ações criminosas estando sujeitos, portanto, às balas perdidas ou direcionadas.
A busca de explicações de natureza bio-hormonal para caracterizar a juventude como irresponsável, pouco afeita à prudência e a cuidados, mesmo quando acrescidas de algumas tinturas sociológicas pouco nos consolam em relação a esse quadro de grande devastação. Os jovens brancos de classe média morrem em proporção bem menor do que os negros, pardos, mulatos ou nordestinos das camadas populares. Não há dúvida de que a desigualdade social e as precárias condições de vida nas favelas, e nos bairros pobres em geral explicam parcialmente esse quadro. Historicamente, os jovens, desde a Antiguidade mais remota, constituem a categoria de guerreiros e em várias ocasiões, as suas perdas foram tão grandes a ponto de ameaçarem a estabilidade da vida social, como na Segunda Guerra Púnica, em Roma, a Guerra Civil norte-americana e a Primeira Guerra Mundial, sobretudo, com seus efeitos sobre a elite britânica da época. Ou seja, a juventude, muitas vezes mas, nem sempre a mais pobre, serve de carne de canhão nos confrontos militares.
O fato de não estarmos vivendo uma guerra convencional não elimina os perigos a que estão submetidos os membros dessas faixas etárias. Há muitas explicações, mais ou menos interessantes, em que se misturam biologia, psicologia, sociologia para explicar esse estado de coisas. O que podemos constatar, tanto para os pobres quanto para os prósperos é a falência comum de mecanismos e processos de educação e socialização que incutissem padrões básicos de civilidade, autodisciplina e controle capazes de ajudar a enfrentar as dificuldades, frustrações e tentações da vida contemporânea. Sem querer colocar tudo no mesmo plano social, é inegável, por exemplo, que os desejos e aspirações de consumo, seja por um par de tênis, por uma arma, por drogas ou por um super carro, sem contar as pretensões erótico-amorosas, estão entre as causas principais de um descontrole que produz vítimas nas circunstâncias as mais variadas.
Não me parece produtivo simplesmente culpabilizar famílias e supostos responsáveis. Estamos lidando com um complexo sócio-cultural em que essas famílias de vários níveis sociais, as escolas, desde o fundamental até o universitário, as Igrejas, a religião em geral e, principalmente, o poder público apresentam desempenhos contraditórios e inadequados, expressando uma ausência de consenso mínimo em torno de valores e paradigmas. A falta de liderança, a desmoralização das elites, sobretudo as políticas, a impunidade generalizada e o desprezo por princípios e critérios éticos-sociais constituem o campo propício para a desvalorização da vida humana. À falta de sensibilidade social soma-se uma indiferença pelas condições de vida, riscos e destino dos outros, mais ou menos próximos.

*Antropólogo
PUBLICADO EM O GLOBO, 23/09/2006.

DE QUEM É A CULPA?

Gilberto Velho*

A violência e o medo sempre acompanharam a humanidade. Desde os tempos mais remotos as disputas e os conflitos, nas mais variadas sociedades e culturas, apresentavam potencial de irrupção de agressividade física. No Ocidente, Clistenes e Sólon ficaram como personagens fundadores da democracia ateniense através do estabelecimento de um espaço público em que as disputas entre linhagens e outros grupos de parentesco pudessem encontrar um locus de negociação que permitisse a continuidade e o fortalecimento da vida social. Entre outros objetivos, procurava-se controlar um sistema de represálias baseado na vingança que mantinha a sociedade permanentemente insegura e vulnerável. Desde então, na própria história de Atenas e da Grécia, a violência longe de desaparecer, reapresentou-se em vários momentos e situações, como na Guerra do Peloponeso e nas Guerras Pérsicas. Portanto, tratavam-se de conflitos internos e externos que colocavam o ideário de democracia permanentemente em cheque diante da alternativa dos tiranos e da dominação estrangeira. Ficou, no entanto, essa herança de que por mais difícil a tarefa era preciso tentar criar e manter contextos e situações em que através da lei fosse possível congregar cidadãos em busca da resolução de suas diferenças.
Não se trata, evidentemente, de percorrer toda a História, mas de assinalar algumas idéias fundamentais que sobreviveram a todos os tipos de opressão e abuso de poder. O que estamos procurando hoje no Brasil é, diante de uma crise sem precedentes, buscar caminhos e soluções que preservem o projeto de democracia associado ao restabelecimento de uma ordem pública que garanta os direitos mínimos de cidadania. Infelizmente, os políticos, representantes da polis, revelam-se, cada vez mais, incapazes de responsabilizar-se e assumir esse desafio. Mesmo diante da terrível conflagração em São Paulo nos últimos dois meses, ponto culminante de um processo que atinge todo o país, não há sinais de providências e articulações em torno de uma ação efetiva que junte política social e urgente reorganização do sistema de segurança pública. Pior ainda, multiplicam-se as evidências de corrupção e desonestidade na vida política brasileira, desmoralizando-a ainda mais.
Nunca é demais lembrar que cabe ao Governo Federal, por seus recursos legais, materiais e simbólicos, liderar e coordenar o enfrentamento dessa grande crise que vivemos. Efetivamente, o que está em jogo é a atuação e responsabilidade do Estado Nacional que tem sido há décadas incapaz de assumir esse desafio por razões as mais variadas, mas que passam, principalmente, por uma visão política oportunista e imediatista.
O atual Governo Federal foi eleito com um Plano Nacional de Segurança Pública que, embora sujeito a possíveis críticas, é uma referência fundamental. Urge ativá-lo envolvendo Executivo, Legislativo e Judiciário e o poder público estadual e municipal. O mínimo que se pode esperar nesse ano de eleições é que os diferentes candidatos e partidos assumam um compromisso sólido e confiável com a construção de um projeto sério e corajoso de busca de paz social, combatendo tanto a gritante desigualdade quanto a ameaçadora violência. Hoje não há como evitar o temor de desagregação da sociedade brasileira.

*Antropólogo
PUBLICADO EM O GLOBO, 24/07/2006.

PACTO CONTRA A VIOLÊNCIA

Gilberto Velho*

Os últimos acontecimentos em São Paulo e em outros estados são a prova definitiva do caos que se instaurou na segurança pública de nosso país. O problema vem de longe e já foi denunciado e analisado por dezenas de cientistas sociais, jornalistas, artistas, intelectuais e pessoas das mais diferentes origens e procedências. O caso de São Paulo é particularmente assustador pois trata-se do estado que, em princípio, disporia de mais recursos em todo o Brasil para enfrentar a criminalidade, tanto pelo efetivo de sua polícia como, também se acreditava, pela sua competência. No entanto, o que tem ocorrido desmente essas crenças e confirma, de modo dramático, o desamparo e vulnerabilidade da sociedade brasileira diante da agressividade das organizações e bandos criminosos. As trocas de acusações entre os governos federal e estadual só ressaltam a inoperância de ambos. As ofensas e trocas de insulto entre políticos demonstram a falta de uma visão que vá além de interesses imediatistas de facções e partidos.
Os números dos ataques criminosos, a paralisação da maior cidade do país, o pânico de sua população e a descrença generalizada no poder público constituem-se em séria ameaça para o próprio regime democrático. A reação dos órgãos de segurança nos últimos dias assume características de vingança e retaliação que nada tem a ver com os princípios de justiça e ordem que são os valores fundadores de uma República democrática. Existe na população, de modo generalizado, o desejo de medidas enérgicas para reverter o quadro geral de violência. Mas isso tem que ser interpretado e conduzido de modo a não agravar ainda mais a deterioração das relações entre as diferentes categorias e grupos sociais no Brasil. Certamente o restabelecimento da ordem não pode significar licença para matar. O número de mortes de supostos criminosos, nas últimas quarenta e oito horas, levanta suspeitas sérias sobre a lucidez e motivações dos responsáveis pela segurança pública. É mais do que sabido que grande parte dos órgãos responsáveis pelo combate à criminalidade estão envolvidos e são mesmo cúmplices de boa parte das atividades ilegais que constituem rotina em nossa sociedade. A carnificina atual assemelha-se mais a guerra entre bandos do que a busca de implementação da ordem e restabelecimento da paz social. Há mais de vinte e cinco anos que essas tragédias se sucedem aumentando, cada vez mais, sua dimensão e gravidade. Episódios sangrentos que desmoralizam a ordem pública já ocorreram, com freqüência, como sabemos, também no Rio de Janeiro e em outros estados do Brasil. Trata-se, indiscutivelmente, de uma questão nacional.
Num ano eleitoral como o que estamos vivendo em que os interesses e ambições políticas se acirram, urge a busca de algum tipo de pacto entre os diferentes candidatos e partidos, sustentados pela sociedade civil para que se chegue a uma grande aliança e entendimento em defesa da própria continuidade de nosso Estado-Nação. As tentativas de diminuir e encobrir a gravidade do que estamos sofrendo devem ser vistas como cumplicidade com a criminalidade em seus diversos níveis. É preciso identificar e denunciar os interesses que impedem a implementação de políticas como a do já existente Plano Nacional de Segurança Pública praticamente engavetado devido a desentendimentos e práticas políticas menores.
Não basta um pacto pela estabilidade econômica. É chegado o momento, já muito tarde aliás, de se fazer um esforço efetivo para juntar sociedade civil e poder público na busca e na efetivação de um projeto de emergência que vá além de medidas pontuais e promessas demagógicas.

*Antropólogo
PUBLICADO EM O GLOBO, 21/05/2006.

VIOLÊNCIA E SEGURANÇA PÚBLICA

Gilberto Velho*

O fim do Regime Militar foi um marco na História do Brasil, com conseqüências para toda a sociedade, como a abertura política, o retorno dos exilados, o fim da censura, as eleições diretas e a volta dos militares aos quartéis. Entre nós, os valores democráticos foram sempre frágeis e sujeitos a tempestades, produzindo incontáveis vítimas. Nos períodos assumidamente autoritários o poder público, associado a interesses privados, exerceu a sua força com brutalidade, prendendo, torturando e matando. A violência é característica desta sociedade, desde a Colônia até hoje, mesmo em períodos aparentemente mais pacíficos. A democracia política reinstaurada, não só não apagou essa história, como não controla o crescimento da violência que atinge hoje novos patamares. A democratização não é responsável por esse fenômeno que assume proporções inéditas com um banditismo associado ao tráfico de armas e drogas em escala nacional e internacional. Todo ano morrem assassinados dezenas de milhares, além dos feridos e vitimizados em roubos, assaltos e seqüestros. Pessoas de todos os meios são atacadas, mas o ônus principal é das camadas populares, mais vulneráveis à ação da criminalidade, particularmente, os jovens de sexo masculino que envolvidos em lutas de quadrilhas e confrontos com a polícia, apresentam a maior proporção de vítimas fatais.
A insegurança é assustadora, particularmente, nas cidades. As causas são múltiplas, como desigualdade social, urbanização descontrolada, aspirações de consumo frustradas, dificuldades no mercado de trabalho, falência dos sistemas de saúde e educação, além de conflitos de valores em todos os níveis.
A questão é como enfrentar essa situação com uma sociedade civil desmobilizada, enquanto o poder público demonstra incompetência, constantemente dividido por interesses políticos menores que inviabilizam uma ação coordenada das autoridades federais, estaduais e municipais. Estas, com freqüência, minimizam ou encobrem a gravidade da violência em nome da “imagem do país”. Por mais escandalosos que sejam os episódios, não se identifica uma reação à altura por parte do poder público. Clama-se, de vários modos, para a urgência da implementação de uma política social contínua e abrangente que enfrente a gravidade dos problemas de trabalho, saúde e educação da nação. A pobreza e a frustração social se não explicam todo o potencial de agressividade, certamente são matéria prima fundamental para a sua eclosão.
Urge a reforma dos órgãos de segurança que precisam transformar-se em instrumentos protetores de uma sociedade sofrida, onde cidadãos possam desfrutar de vida compatível com padrões básicos de convivência social. O combate à corrupção e reorganização da polícia são tarefas para o governo federal que, com um desempenho tímido, não assume a responsabilidade de cuidar da segurança e bem estar de todos os brasileiros.
*Antropólogo
PUBLICADO EM O GLOBO, 15/03/2005.

A RESPONSABILIDADE DO PRESIDENTE

Gilberto Velho*

Estamos acompanhando, nos últimos dias, o noticiário sobre a viagem do Presidente da República e sua comitiva à África. Não há dúvida de que existe hoje na nossa política externa um projeto significativo de aproximação construtiva, com finalidades econômicas e políticas, de importantes países do que se chamava, até pouco tempo atrás, de Terceiro Mundo. Particularmente, a atuação junto aos países mais pobres, como os africanos de língua portuguesa e o Haiti, coloca o Brasil num patamar de grandeza ética e humanitária associada à implementação de interesses político-econômicos legítimos para um país de nossa dimensão e expressão.
No entanto, é preciso reconhecer que causam uma certa estranheza os esforços e mobilização material e simbólica das viagens presidenciais para o exterior nessas missões humanitárias, diante da gravidade da situação interna brasileira, que assume feições escabrosas. Indiscutivelmente, medidas e iniciativas importantes têm sido tomadas quanto à política social. Algumas propostas de promoção de maior igualdade e inclusão têm aspectos polêmicos. Mas, indiscutivelmente, o governo federal tem aparecido como ator relevante e sujeito nesse processo.
A área em que mais se sente a fraqueza de atuação deste governo é a de Segurança Pública. Sabemos que essa problemática é expressão de uma série complexa de variáveis ligadas à desigualdade social, ao mercado de trabalho instável, à urbanização precária e a problemas educacionais. No entanto, a leitura dos jornais diários constitui uma experiência traumática e uma verdadeira agressão às mentes e corações de todos os que ainda não perderam esperanças de cidadania. A violência se manifesta em todos os níveis da vida social e de forma descontrolada. Assaltos, seqüestros, assassinatos, balas perdidas, corrupção e desmoralização das forças policiais etc., tudo isso se soma para compor um quadro de grande insegurança e tensão social. Há, evidentemente, uma perda de controle por parte do poder público. O avô que é morto por uma bala perdida enquanto brinca com seus netos numa praça, os jovens pobres executados por policiais, a senhora assaltada e atropelada em plena avenida Vieira Souto, o rapaz assassinado em defesa de uma octagenária, o sistemático ataque a quartéis das Forças Armadas, as sangrentas rebeliões de presos produzem um panorama que, embora aterrador, parece não sensibilizar o poder público para uma ação efetiva. No caso do Rio de Janeiro, são óbvias as deficiências, falhas e incompetência das autoridades estaduais. Fora algumas ações isoladas bem sucedidas, assistimos a uma rotina assustadora de descontrole da Segurança Pública. As tentativas de entendimento entre o poder local e o governo federal, até agora, surtiram pouquíssimo resultado, e não há indícios de uma melhora a curto ou a médio prazo. A sociedade civil, cada vez mais vitimizada, não tem conseguido sensibilizar o poder público para que a socorra nessa situação crítica. Embora acreditemos nos princípios federativos e na divisão de poderes, não há como eximir o governo federal de sua responsabilidade maior de defender e garantir os seus cidadãos no território nacional, por todos os meios legais que se fizerem necessários. A dramaticidade do quadro em que vivemos exigiria uma outra postura da que até agora tem predominado. O Presidente da República pouco fala ou se manifesta sobre a questão da Segurança Pública. Seria lamentável acreditar que em Brasília não se perceba o grau de deterioração que afeta toda a sociedade, particularmente as grandes metrópoles, devido a essa crescente e incontrolável violência. Trata-se, claramente, de um assunto que exige uma mobilização nacional, reunindo partidos políticos, autoridades estaduais, municipais, associações civis, entre outros. Mas não há como eximir o governo federal do seu papel central nesse processo. Seria importante manifestar, de modo insofismável, que as preocupações e iniciativas em relação a países pobres do Terceiro Mundo, com todas as suas mazelas e sofrimentos, é consistente, por sua vez, com as iniciativas e políticas públicas para o Brasil propriamente dito. Estamos solidários com o Haiti, com São Tomé e Príncipe, com Moçambique, além de outros países que poderiam ser citados. Isto é positivo, generoso e tem alto significado político e simbólico. Urge que a população brasileira sinta-se, por sua vez, mais amparada e protegida pelo Estado no seu cotidiano tão sofrido.

* Antropólogo
PUBLICADO EM O GLOBO, 30/07/2004.

À ESPERA DE NOVA TRAGÉDIA

Gilberto Velho*

Vivemos há algumas semanas, por ação criminosa, mais uma crise de grandes proporções no Rio de Janeiro, com violentos conflitos na Rocinha e no Vidigal e repercussões em vários bairros e áreas da cidade. Os episódios, por sua gravidade, com mortos e feridos, prejuízos materiais, fuga de famílias, danos simbólicos e insegurança generalizada, tiveram, durante vários dias, impacto nacional e internacional.
Diante do clamor generalizado, da reação da imprensa e da sociedade civil em geral, pressionou-se o poder público para que assumisse suas responsabilidades e tomasse providências para impedir que se repetisse tragédia semelhante. Havia ficado claro o mau uso de informações, a falta de preparo e coordenação e a fragilidade de órgãos e instituições responsáveis pela segurança pública. Somava-se à falta de um sistema de informações, minimamente eficiente, o uso desmedido da força, confirmando as piores imagens sobre a brutalidade policial. Evidenciou-se, mais uma vez, a vitimização de uma população pobre, tiranizada por bandidos e, freqüentemente, maltratada por policiais. Os bairros e as vizinhanças de classes médias e elites estiveram, por sua vez, expostos à vulnerabilidade e à quebra da ilusão de relativa proteção diante das intempéries sociais e da ação da criminalidade.
Infelizmente, os entendimentos entre os governos federal e estadual não transcorreram como desejava, de modo explícito e claro, a opinião pública. A verdade é que não se sabe muito bem a que entendimento ou desentendimento se chegou. A decisão de utilizar as Forças Armadas para o resgate de armas pesadas, sem a sua presença ostensiva na cidade, poderia ser um passo dentro de um estratégia mais ampla de coordenar esforços nos vários níveis da segurança pública. Poderia ser uma opção dentro de um quadro de entendimento em que outras medidas seriam progressivamente tomadas a partir de uma coordenação central. No entanto, as notícias e boatos que chegam indicam que, efetivamente, não se chegou a um entendimento entre essas esferas do poder público, diante da resistência do Governo do Estado em permitir que estivesse, em algum momento, admitindo não ter controle sobre a segurança pública do Rio de Janeiro. Aparentemente, o Governo Federal desistiu de insistir em montar uma operação em larga escala e a prazo maior, em função das dificuldades e tensões políticas, com os dirigentes fluminenses. Tudo isso está envolvido por uma certa névoa, que a imprensa ainda não conseguiu devassar. As autoridades, por sua vez, provavelmente não chegaram a um acordo sobre o que poderia ser dito à população, deixando-a ainda mais perplexa e insegura.
Assim, apesar de algumas iniciativas da sociedade civil em relação à Rocinha, continuamos aguardando novos episódios inevitáveis de erupção de violência, sem que tenha sido esboçado um sistema capaz de enfrentar a gravidade desse quadro, que já produziu tantas vítimas. Não temos informações suficientes sobre os planos e deliberações do poder público. Não se trata de querer descobrir segredos militares e de planejamento de ações específicas de combate ao banditismo, pois isto poderia ser altamente contraproducente para a eficácia das medidas. Mas o que assusta são sinais de impasse e de falência de diálogo entre as autoridades federais e estaduais. Caso isso se confirme, depois de um período de aparente recuo da violência mais escandalosa, em breve assistiremos e seremos atingidos por novas crises, com mais vítimas e danos, conseqüência deste impasse político que estamos vivendo.
*Antropólogo
PUBLICADO EM O GLOBO, 19/05/2004.

DESAFIOS DA POLÍTICA CIENTÍFICA

*Gilberto Velho

Novos governos apresentam programas e propõem modificações nos anteriormente existentes. Até aí tudo muito justo e mais do que razoável, principalmente quando os políticos eleitos eram antes oposição, criticando e discordando de ações do governo anterior, muitas vezes de modo bastante vigoroso.
No entanto, vem do próprio governo brasileiro atual declarações que insistem na continuidade de projetos e políticas essenciais para a estabilidade e progresso do país. Trata-se, na realidade, de distinguir políticas de governo e de Estado. Estas, em princípio, deveriam transcender interesses imediatos e justificam-se, a longo prazo, pelos seus objetivos e metas. Nem sempre é fácil distinguí-las e isso leva a polêmicas e divergências inevitáveis.
O atual governo, através do Ministério de Ciência e Tecnologia, tem enfatizado sua preocupação com a descentralização, denunciando a concentração excessiva de recursos no Sudeste, em detrimento, sobretudo, do Norte e do Nordeste. Dificilmente encontraremos alguém na comunidade científica que irá se opor a essa visão. De fato, é fundamental que se abram oportunidades e se estimulem as atividades científicas em todo o país.
No entanto, há uma forte preocupação de grande parte dos cientistas brasileiros com os riscos de pulverizar recursos, mais do que escassos, sem garantias suficientes quanto à qualidade dos projetos apoiados.
Isto deve valer para todo o Brasil e não apenas para as regiões consideradas mais carentes. Mas, cabe lembrar que pesquisadores dos mais respeitáveis do Norte e do Nordeste têm advertido contra os perigos do clientelismo, prática que eles próprios têm combatido no esforço de elevar a qualidade científica da produção local.
Essa ênfase na avaliação do mérito intrínseco dos projetos não deve ser confundida ou rotulada como elitismo, assim como a preocupação com a descentralização não deve ser estigmatizada como populista, sob pena de empobrecimento grave de um debate importante para o futuro da ciência no Brasil.
O que se espera é a busca de um ponto de equilíbrio em que a descentralização seja realizada de modo criterioso, sem prejuízo de importantes programas em andamento que têm, direta ou indiretamente, repercussão positiva para todo o país. Ressalte-se que já existem vários exemplos positivos de intercâmbio e cooperação entre programas de diferentes regiões, pautados por padrões condizentes com a melhor atividade científica.
Esses casos podem se ampliar através de mecanismos de avaliação de mérito e distribuição de recursos que não estejam sujeitos ao predomínio de uma visão política excessivamente pragmática e imediatista. Isto significaria um sério retrocesso na história da ciência no Brasil. Por outro lado, é necessário lutar por mais recursos para a pesquisa científica e tecnológica, sempre sacrificada e relegada à segundo plano nas prioridades dos diferentes governos que se sucedem.
Esse esforço implica, necessariamente, um diálogo franco e constante entre as autoridades governamentais e a comunidade científica, para evitar mal entendidos, desencontros e impasses desgastantes.

*Antropólogo
PUBLICADO EM O GLOBO, 08/09/2003.

PATRIMÔNIO, GUERRA E ABANDONO

Gilberto Velho*

As notícias trágicas sobre morticínio e devastação no Iraque são agravadas pela destruição de seu patrimônio cultural. O saque do Museu de Bagdá, o incêndio da Biblioteca Nacional e a devastação de tesouros históricos e arqueológicos aprofunda o drama de violência e desrespeito. Não se trata de defender, obviamente, o regime derrotado mas de denunciar as atrocidades de todos os tipos desencadeadas com a invasão anglo-americana. O patrimônio cultural de uma nação é parte fundamental e constitutiva de sua identidade, âncora de sua memória, base para os seus projetos e sua contribuição para a humanidade.
De outro modo, mas igualmente dramática, é a situação de abandono e desprezo em que está o patrimônio cultural brasileiro. O recente incêndio em Ouro Preto é um elemento a mais no quadro do descaso que afeta todo o país, incluindo cidades como Rio de Janeiro e Salvador, fontes permanentes de más notícias.
Dentro dessa situação geral de carência, a crise do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) é das piores diante da riqueza de seu patrimônio cultural e científico. A importância de seu prédio, de suas coleções, de suas atividades científicas e de ensino exigiriam uma ação coordenada pelo governo federal, envolvendo as áreas de educação, cultura e ciência e tecnologia. Antes de tudo é preciso protegê-lo de propostas demagógicas e apoiar vigorosamente seus diversos projetos relevantes para o país.
Outro caso lamentável é o do Instituto Nacional do Folclore do Ministério da Cultura, particularmente massacrado no governo Collor e vítima constante de diagnósticos e medidas tecnocráticas que ignoram a sua importância para a defesa e estudo das culturas tradicionais e populares de nosso país. Espera-se do atual governo brasileiro perspectivas e ações para a área cultural condizentes com seus programas e intenções anunciados.
Num mundo conturbado e violento, urge um esforço forte e contínuo em defesa do patrimônio cultural que deve ser um dos eixos para a constituição de uma sociedade mais íntegra e harmoniosa.


*Antropólogo
PUBLICADO EM O GLOBO, 23/04/2003.

TERRORISMO URBANO

Gilberto Velho*

Não há como, depois dos episódios do dia 24 de fevereiro, minimizar ou disfarçar a gravidade da situação da segurança pública no Rio de Janeiro, cidade e estado. Os atos de vandalismo e os procedimentos usuais dos criminosos assumem uma nova dimensão a partir do momento em que dezenas de ônibus foram incendiados, bombas foram lançadas em diversos pontos da cidade numa ação explicitamente coordenada por uma liderança que confronta o poder público, desmoralizando e humilhando as autoridades e a própria sociedade civil. Esses fatos dão continuidade e agravam todo um processo de muitos anos que teve no dia 30 de setembro próximo passado um dos seus piores momentos mas que foi superado, inclusive através das diversas vítimas, pelos acontecimentos de ontem.
Não há como eximir o governo federal pela ausência de uma política de segurança pública consistente com o regime democrático. Infelizmente, durante o governo Fernando Henrique muito pouco se fez nessa direção. É urgente que o novo governo assuma uma outra posição e, de fato, inclua essa questão como uma prioridade tão importante quanto o combate à fome e à desigualdade. Desgraçadamente, o Rio de Janeiro aparece como caso- limite de uma problemática nacional mais ampla. O governo do estado confirma a sua incompetência para controlar a violência criminosa e dar a segurança mínima necessária para a vida de uma sociedade civilizada. A prefeitura do Rio de Janeiro, por sua vez, pouco contribui para a tranqüilidade e ordem urbanas, sendo incapaz de se articular com o estado e com outros órgãos, como o Juizado de Menores, para enfrentar o crescente e ameaçador fenômeno da população de rua ligado à miséria e à desigualdade mas também explorado de forma criminosa. Tudo isso se soma para constituir um quadro de grande insegurança, medo e frustração. A ausência de uma política social coordenada entre os vários níveis do poder público já foi denunciada e criticada nas mais diferentes instâncias e por indivíduos e grupos de diferentes posições político-ideológicas. É necessário ultrapassar as mesquinharias das brigas e diferenças entre autoridades para que se possa tentar superar essa crise que, infelizmente, parece não ter limites. Caso isso não aconteça, em breve crescerá a demanda por medidas mais radicais que poderiam até culminar em algum tipo de intervenção no estado do Rio de janeiro. Deve-se tentar evitar isto mas o atual quadro de desmoralização e falta de credibilidade das autoridades estaduais faz-nos pensar que o tempo está se esgotando.



*Antropólogo


PUBLICADO EM O GLOBO, 26/02/2003.

A SEGURANÇA COMO PRIORIDADE

Gilberto Velho*

É indiscutível que uma das principais razões para o desgaste do governo Fernando Henrique Cardoso é a grave crise da segurança pública do país. O cotidiano de toda a população, nos últimos anos, ficou cada vez mais afetado pela violência crescente e disseminada. Pessoas de todas as classes e grupos sociais, de um modo ou de outro, sentiram diretamente, ou muito próximo, através de parentes e amigos, a truculência da bandidagem. Sem dúvida, nas classes populares essa experiência de maltrato e sofrimento não é de agora embora muito tenha se agravado recentemente, seja pela ação dos bandidos, seja pela ação de policiais despreparados ou comprometidos com a criminalidade.
No entanto foi, sobretudo, no universo de camadas médias que se desenvolveu um forte sentimento de desilusão quanto à ação do poder público. Frustradas em várias de suas aspirações, como no caso do funcionalismo público e de muitos profissionais liberais, passaram a ver-se também como alvo sistemático da ação dos criminosos. Ninguém se satisfaz com as explicações do Governo Federal quando remete às autoridades estaduais a responsabilidade do enfrentamento da crescente violência. Os possíveis problemas jurídico- legais devem ser superados através de procedimentos democráticos articulando os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Deve-se frisar que os muitos méritos do governo que, ora está se encerrando, ficaram bastante obscurecidos pelo crescimento do sentimento de insegurança, com conseqüente prejuízo da qualidade de vida, principalmente nos grandes centros urbanos.
Espera-se que o novo governo escape desses impasses e armadilhas e consiga, baseado no evidente apoio popular de que dispõe, assumir papel de liderança e centralidade na garantia da segurança pública de toda a sociedade. Preocupa a notícia na imprensa de que importante dirigente do PT estaria “ciente de que o Governo Federal não dispõe de muita margem de influência no combate à criminalidade”. Isso seria desistir antes da hora e cair no mesmo erro do governo que se finda. Urge estar preparado para, desde já, dialogando com os atuais dirigentes, estar em condições de acionar o competente plano de segurança pública apresentado na plataforma do candidato Lula. É claro que essas medidas devem ser consistentes com o conjunto de políticas públicas incluindo-se aí o combate à fome e à miséria. Os governos estaduais que não acompanharem esse projeto como prioridade deverão sofrer restrições e penalidades dentro das regras do jogo democrático. Isso não significa retrocesso nem incentivo a qualquer forma de autoritarismo mas sim o reconhecimento da gravidade de uma situação que afeta a nação como um todo. Portanto, trata-se de responsabilidade intransferível do Governo Federal coordenar e dirigir as providências necessárias e urgentes para recuperação de um mínimo necessário de paz e tranqüilidade para o cotidiano da grande maioria dos brasileiros. É preciso superar a idéia e os preconceitos que tornam a preocupação e a implementação de políticas de segurança pública algo problemático para setores progressistas da vida política nacional. Hoje em dia a luta contra a violência é tão prioritária como o combate à fome que, de modo óbvio, sendo fenômenos diferenciados, apresentam fortes relações. Sabemos que a pobreza e a iniquidade social não explicam, por si só, a violência e a criminalidade. Há que reconhecer suas relações sem esvaziar as especificidades e peculiaridades de sua presença na sociedade brasileira.

* Antropólogo
PUBLICADO EM O GLOBO, 14/11/2002.

VIOLÊNCIA E PODER PÚBLICO

Gilberto Velho*

O trágico sacrifício do jornalista Tim Lopes denuncia, de modo vigoroso, a raiz da violência na sociedade brasileira contemporânea. Existem muitas explicações para as diferentes formas de criminalidade que campeiam em nosso país. É impossível descartar a desigualdade sócio-econômica, a concentração de riquezas e a cupidez de grupos e indivíduos insensíveis à questão social. O crescimento urbano desordenado e caótico, o florescimento de ideologias individualistas desprovidas de conteúdos éticos e de solidariedade social, a crise de valores, o consumismo, o desprestígio de instituições públicas e a fragilidade da sociedade civil são algumas outras variáveis explicativas que reforçam o quadro destrutivo e ameaçador.
O fato é que o tráfico de drogas e a criminalidade a ele associada atingiram uma tal gravidade que põem, efetivamente, em cheque o Estado de Direito. O poder público admite, às vezes candidamente, que perdeu o controle sobre áreas significativas da cidade, particularmente no Rio de Janeiro. Assistimos, cotidianamente, a operações de guerra transmitidas pela televisão, com tropas subindo e descendo morros, vasculhando e trocando tiros com os bandidos. Os embates entre gangues de traficantes se multiplicam nos mais diversos pontos e áreas da cidade, aumentando a insegurança e o medo da população. Como resultado desses combates, freqüentemente morrem ou são feridas pessoas inocentes. Sabemos do cruel exercício de poder exercido pelos traficantes e seus comparsas contra qualquer contestação que possa surgir na favelas e nas periferias. Há um misto de temor e reverência nessas populações, acuadas por esses bandidos, como demonstram diversas pesquisas e reportagens como as de Tim Lopes. As drogas, sem dúvida, constituem a matéria-prima que estimula e alimenta a formação e existência das redes criminosas. Mas elas não explicam tudo. Colocar todos as razões da violência nas drogas, propriamente ditas, simplifica em excesso a profundidade e gravidade da questão. O tráfico de armas agrava a violência de forma extrema com introdução de artefatos e equipamentos potentes e sofisticados até há alguns anos atrás praticamente desconhecidos. Esses alteraram para muito pior o nível da ameaça e multiplicaram o poder dos criminosos, dando-lhes condições bélicas inéditas.
É importante não alimentar ilusões. O banditismo, sob diferentes formas, abocanhou e criou um tipo de poder de que não abrirá mão sem forte luta e resistência. Outras fontes de poder e recursos podem alimentar essas redes criminosas, mais ou menos organizadas. Outros ítens podem se somar ou substituir as drogas de hoje. Novas formas de criminalidade serão desenvolvidas e aperfeiçoadas. O fato é que, hoje em dia, os bandidos adquiriram um prestígio social significativo, mesclado a medo e ódio, no meio em que vivem. Atingem uma notoriedade que se expressa no seu aparecimento direto ou por citação na mídia do país. Tornaram-se, de algum modo, pessoas importantes, por mais que isso possa soar distorcido e falso para a maioria da sociedade. A vida pode ser breve mas é intensa e repleta de um tipo de gratificação desconhecido ou condenado por gerações anteriores, associado às drogas e ao gozo do poder. Já mais do que tarda a mobilização do poder público, em todos os níveis, com a coordenação do governo federal para não só incrementar uma política social efetiva, estável e permanente para lidar com a desigualdade e a pobreza, mas, sem hesitações maiores, agir politicamente, inclusive com o uso da força, para reconquistar a soberania ameaçada. Embora nas favelas e nas periferias o quadro seja mais dramático e explícito, é evidente que o cotidiano dos brasileiros mudou para pior nas últimas décadas, fazendo com que a violência seja uma ameaça permanente e onipresente para todos os indivíduos e para a democracia como instituição político-social. As conquistas da sociedade brasileira estão hoje postas em cheque pelo avassalador crescimento da violência e da criminalidade. Este é o nosso maior desafio.

* Antropólogo

PUBLICADO EM O GLOBO, 14/06/2002.

O FUTURO DA UNIVERSIDADE

Gilberto Velho*

Todas as avaliações sobre a qualidade do ensino universitário brasileiro apontam o melhor desempenho das universidades públicas, refutando constantes tentativas de desqualificação. Há importantes destaques, de outras instituições, sobretudo as PUCs, mas é inegável que a excelência de ensino e pesquisa associados, concentra-se num conjunto de instituições federais, nas estaduais paulistas e em algumas outras como a UERJ.
USP, UNICAMP e UNESP, no estado mais rico do país, mantêm, com algumas variações, um padrão de boa qualidade. Contam com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, uma agência competente academicamente e financeiramente poderosa.
As universidades federais apresentam um quadro mais heterogêneo, mas é inegável a enorme importância científica e acadêmica da antiga Universidade de Brasil (UFRJ) e de outras como Brasília, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Fluminense, Santa Catarina, Paraná, Bahia, Ceará, etc. São discutíveis as vantagens de funcionarem dentro de um único sistema, burocratizante e isonômico, dificultando a inovação e a criatividade que poderiam desenvolver-se ainda mais, através de uma diferenciação responsável e enriquecedora. Mas o fato é que as universidade federais constituem um precioso patrimônio da Nação, que não deve ser desperdiçado e amesquinhado. Há vários problemas crônicos de recursos desde salários até o necessário para a manutenção e renovação mínima das instalações, muitas vezes precárias e decadentes. A atividade de pesquisa depende basicamente do Ministério de Ciência e Tecnologia, que tem sido bastante atuante, embora opere com um orçamento relativamente limitado. A criação dos fundos setoriais, abre, sem dúvida, novas perspectivas. As agências estaduais, fora a mencionada FAPESP, têm, em geral, atuado de modo muito modesto e irregular. Recentemente, no Rio de Janeiro, a FAPERJ, melhorou significativamente o seu desempenho. Em um ou outro estado da Federação, pode-se registrar algum investimento local na pesquisa universitária. A CAPES, do Ministério da Educação, continua sendo uma agência importante, que interage bem com a universidade, destoando, às vezes, do comando do ministério.
Não é possível pensar-se em um projeto nacional, a longo prazo, em que a universidade pública não esteja cada vez mais presente, produzindo conhecimento e formando quadros. Infelizmente, como ficou demonstrado na última greve, o Ministério de Educação não tem sabido lidar com a sua complexidade e importância. Declarações e atitudes preconceituosas, até truculentas, como o corte indiscriminado de salários de docentes e funcionários, acirraram um conflito que poderia ter sido contornado com mais diplomacia e capacidade de negociação. Por outro lado, registre-se o radicalismo de setores do movimento docente, que encaram a universidade como campo propício para o confronto político, apostando, freqüentemente, no impasse. Assim, dois atores, ideologicamente antagônicos, contribuem para agravamento da crise universitária.
É preciso superar este estado de coisas para não cairmos num círculo vicioso de greves intermináveis e retaliações irresponsáveis. A busca de soluções, a longo prazo, passa, fundamentalmente, pela atuação dos professores comprometidos com a docência e a pesquisa. É necessária também a participação de funcionários e alunos que encarem a universidade como patrimônio nacional que pode e deve ser aperfeiçoado e não como locus privilegiado do conflito político. As sociedade científicas como a SBPC, a Academia Brasileira de Ciências, assim como setores interessados e responsáveis da sociedade civil, devem desempenhar papel fundamental neste processo de discussão e aperfeiçoamento. Mas, sobretudo, urge que o Ministério da Educação assuma uma postura mais construtiva e o governo, como um todo, veja a universidade pública como parte importante de um projeto nacional. Não só o ensino de graduação, mas a pós-graduação e as pesquisa, constituem atividades fundamentais das instituições públicas, o que as distingüe da maioria das particulares.
Assim é necessário estabelecer políticas governamentais, de longo prazo, com um mínimo de consistência e coerência e não cair na armadilha do imediatismo e da precipitação. É preciso deter o desgaste e a desmoralização da universidade, que inevitavelmente, revertem contra o Estado e a Nação brasileiros.

* Antropólogo


PUBLICADO EM O GLOBO, 18/12/2001.

TERRORISMO E CULTURA

Gilberto Velho*

A tragédia ocorrida nos Estados Unidos, no dia 11 de setembro, revela-nos com crueza, uma dimensão fundamental da sociedade moderno-contemporânea. Serviu para denunciar não só a violência, mas, através dela, aspectos e características que ficam semi-encobertos ou naturalizados na rotina do cotidiano.

No início do século XX, o pensador alemão G. Simmel já apontava para o desequilíbrio crescente entre cultura objetiva e cultura subjetiva. O enorme desenvolvimento e progresso dos recursos materiais e tecnológicos não era acompanhado, segundo ele, por um aperfeiçoamento e amadurecimento das subjetividades individuais. Isso gerava uma distorção entre os elementos objetivos externos, a disposição da sociedade, e a possibilidade dos indivíduos se beneficiarem internamente, em termos de seu crescimento pessoal. Assim, empobreciam-se as possibilidades de interação e diálogo, afetando a qualidade de vida pessoal e social. Não se tratava de negar ou rejeitar a importância da tecnologia e do desenvolvimento material, mas de sublinhar o descompasso que relegava a dimensão subjetiva a um plano secundário. Esse processo só tendeu a se agravar nos últimos cem anos. Vários outros pensadores trataram desta temática com ênfases e perspectivas diferenciadas.

Os atentados de Nova York e Washington confirmam que a capacidade de comunicação e deslocamento no mundo globalizado não significa maior entendimento e enriquecimento recíproco entre os diferentes atores, sejam, indivíduos, grupos ou Estados Nacionais. Os desequilíbrios sociais, o materialismo, a massificação, o uso descontrolado do poder econômico e militar configuram um quadro de confrontação em que o valor da vida humana torna-se irrisório. Esse fenômeno denuncia-se, de modo literalmente explosivo, nos Estados Unidos no dia 11 de setembro, mas está presente, em maior ou menor grau, no cotidiano de todas as sociedade contemporâneas. O paradoxo da modernidade é que o progresso material não só não eleva, necessariamente, os espíritos mas associa-se, com frequência, a formas extremas de exploração e desrespeito da pessoa humana. A situação de categorias sociais oprimidas, de minorias discriminadas e de regiões miseráveis, expressa e produz, dramaticamente, o mal estar que contamina todas as relações humanas. O uso da violência, com tortura e assassinatos, culminando em massacres de milhares de vítimas, certamente contraria todas as expectativas de civilidade e solidariedade. Os atentados de 11 de setembro, especificamente, violentaram padrões mínimos de sociabilidade e de dignidade humanos. Todos os tipos de “realismo político” ou de “messianismo salvacionista” que procurem justificar ou legitimar tais ações afastam-se de um projeto democrático mais amplo de controle e eventual superação de conflitos através da reflexão e do diálogo.

O terrorismo, portanto, concentra e sintetiza, de forma agressiva, características e tendências identificáveis em vários níveis e dimensões da vida sócio-cultural. Só a tomada de consciência da gravidade desta situação é que pode criar uma base efetiva para ações e políticas de longo prazo que possam sensibilizar não só os atores hoje diretamente em confronto, mas toda a humanidade ameaçada pela violência da intolerância. Urge fortalecer ou criar mecanismos e instâncias internacionais que ultrapassem e transcendam os interesses e motivações que hoje norteiam a política e a economia mundiais, incapazes de promover a tão falada integração dos povos, respeitando a pluralidade e diversidade culturais e individuais.


* Antropólogo
PUBLICADO EM O GLOBO, 08/10/2001.

VIOLÊNCIA E PROJETO NACIONAL

Gilberto Velho*

Por ocasião das comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil não há mais como disfarçar ou tentar diminuir a gravidade do fenômeno da violência na sociedade brasileira contemporânea. Em muitas sociedade há violência. Existem guerras, conflitos étnico-religiosos e banditismo. Nem sempre as fronteiras entre essas manifestações são claras, havendo misturas de todos os tipos como na Colômbia, para ficar por perto de nós. Mas no Brasil, sem guerra civil explícita, atingimos, especialmente nas grandes cidades, com repercussões para quase todo o território nacional, uma situação onde a criminalidade campeia com seu séquito sinistro de assassinatos, seqüestros, assaltos, roubos e tráfico de drogas e armas. A urbanização acelerada, com o crescimento desenfreado das cidades, as fortes aspirações de consumo, em boa parte frustradas, dificuldades no mercado de trabalho e conflitos de valores são algumas variáveis que concorrem para isso. Ninguém mais sente-se seguro, nem empresas nem indivíduos. Senadores da República, ex-governadores, membros da academia brasileira de letras, diplomatas, empresários e suas famílias engordam as listas de vítimas de roubo, assalto, seqüestro e, eventualmente, assassinato. Elites e classes médias tem suas casas assaltadas. O que dizer das camadas populares, secularmente vitimizadas? Nas favelas, nos conjuntos habitacionais, nas periferias, os criminosos fazem, praticamente, o que querem, seviciando, estuprando e matando. Não há lugar protegido. Escolas, igrejas, templos, quartéis, delegacias, etc. são freqüentemente invadidos. As pessoas são humilhadas e desrespeitadas de todos os modos. O poder público tem se mostrado, no mínimo, incapaz de enfrentar essa catástrofe. Mas, pior do que isso, é constatar que toda essa violência só pode existir com a conivência, cumplicidade e ativa participação de grupos da polícia, membros do legislativo de todos os níveis, setores do aparelho burocrático civil e até autoridades do Judiciário. A corrupção está indissoluvelmente associada à violência, uma aumentando a outra, sendo faces da mesma moeda como já foi dito. Esse processo não é de hoje mas vem se acelerando nas últimas décadas, atingindo proporções assustadoras que põem em cheque o próprio Estado Nacional, na medida em que o poder público, não só não consegue mais controlar a criminalidade, mas aparece gravemente contaminado por esta. Sem dúvida a pobreza, a miséria e a iniquidade social constituem, historicamente, campo altamente propício para a disseminação da violência. No entanto, creio que não tem sido dada a devida atenção para a dimensão moral, ética e do sistema de valores como um todo, para a compreensão desse fenômeno.
A perda de credibilidade e de referências simbólicas significativas destrói expectativas de convivência social elementares. Filósofos, pensadores e cientistas sociais das mais variadas orientações mostram como a sociedade só é viável através de um mínimo de valores e padrões compartilhados. Por exemplo, o ataque físico a pessoas idosas já se tornou rotina no cotidiano das grandes cidades brasileiras. Em outros países, com alto índice de pobreza, como a Índia, essas cenas são inimagináveis. Esse tipo de evento era, também, até pouco tempo atrás, muito raro no próprio Brasil, motivo de escândalo e indignação. Hoje banalizou-se assim como outras notícias de crueldade contra mulheres, crianças, pessoas doentes, etc. Trata-se, claramente, de uma crise ético-moral. A família, a escola e a religião não tem sido capazes, por sua vez, de resistir a essa deteriorização de valores. Na sociedade tradicional, com sua violência constitutiva, existiam mecanismos de controle social que marcaram uma moralidade básica compartilhada. Sem dúvida, continuam existindo áreas e grupos sociais que preservam e se preocupam com essas questões. Certamente a maioria das pessoas não é violenta ou corrupta. No entanto, o clima geral de impunidade incentiva a utilização de recursos e estratégias criminosas. A mídia, fundamental numa sociedade democrática, denuncia e divulga o estado de coisas, tornando públicas, pelo menos, parte da atividade criminosa. Mas, em poucos casos, existe a percepção de que a denúncia tem conseqüências, aumentando a sensação de injustiça e impunidade que é, talvez, a principal causa de violência. Hospitais funcionam precariamente, o transporte público é deficiente, os salários baixos e ainda, diariamente, novos escândalos aparecem. Enfatize-se que a solução não é a censura, como gostariam alguns. Na televisão assiste-se ao espetáculo de poderosos senadores desmoralizando-se e ao Poder Legislativo. Prefeituras e governos de estado são acusados de corrupção e conivência com o crime organizado. Um presidente da República é afastado por corrupção mas as investigações não têm continuidade, não sendo apurada a real extensão e profundidade do saque à nação, conduzido por ele e seus aliados. Assim todo um importante movimento social é frustrado. Verbas são desviadas, obras superfaturadas, numa sucessão rápida e ininterrupta de fatos que agravam o quadro de desapontamento, às vezes indiferença e, muitas vezes, revolta. O que esperar diante desses exemplos de improbidade? No mínimo ? a falta de confiança nos quadros dirigentes. Muitos considerarão normal e aceitável vários tipos de transgressão e, mesmo, crimes diante de que aparece na mídia e do que vivem no cotidiano. Outros poderão reforçar sua posição de afastamento e desprezo pela esfera pública. De qualquer forma, instaura-se um clima de salve-se quem puder, onde cada vez menos indivíduos e grupos poderão manter identidades estáveis baseadas em atitudes e comportamentos pautados pela ética religiosa ou laica. Desenvolvem-se, inevitavelmente, soluções do tipo justiça pelas próprias mãos, que aumentam ainda mais a violência e a insegurança. Policiais, bandidos, justiceiros e seguranças, travam batalhas diárias matando e pondo em risco a segurança de toda a população. O fenômeno das balas perdidas, expressão desses conflitos, é difícil de explicar para pessoas que não vivem nas cidades brasileiras. O fato de qualquer pessoa em qualquer de seus bairros estar exposta a esse tipo de perigo ilustra, de modo dramático, a intensidade da crise.
Como construir e sustentar um projeto nacional nessas circunstâncias? A sociedade civil, por si só, é insuficientemente organizada para enfrentar esses desafios e criar alternativas legítimas para o enfrentamento da violência. Só o Estado, reformado e renovado, incluindo o legislativo e o judiciário, pode dispor de meios e recursos, articulado à opinião pública, para reverter essa ameaça de colapso. Estou falando, bem entendido, de regime democrático e não de ditaduras salvacionistas. Sem o apoio contínuo e vigilante da sociedade civil, o Estado corre o risco de hipertrofiar-se num autoritarismo esterilizante, como em boa parte de nosso passado. Recentemente, as práticas de regime militar tiveram papel significativo no desenvolvimento de uma cultura da violência, com invasões de domicílio, tortura e assassinato. Tudo isso agravou a ? vertente que atravessa a história do país, associada ao abuso físico e a truculência em geral. Só governos democráticos, legitimados pela sociedade civil e voltados para os direitos humanos, terão alguma possibilidade de exercer com sucesso o poder e a força contra a criminalidade. Essa ação deve ser viabilizada através de instrumentos legais adequados que lhe garantam continuidade e eficácia, sem recuos e acomodações. Qualquer que seja a sua posição no espectro ideológico, todos os indivíduos e categorias sociais defrontam-se no Brasil com a ameaça da violência. Hoje um projeto capaz de mobilizar a nação passa, inevitavelmente, pelo estabelecimento de uma política efetiva de segurança pública dentro da ordem democrática. Só assim poderemos implementar e consolidar nossa precária cidadania, condição básica para o futuro da nação brasileira.


* Antropólogo


PUBLICADO EM O GLOBO, 20/05/2000.