segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Crime e corrupção no Rio


*Gilberto Velho

Não foram muitas as pessoas que acreditaram que a implantação das UPPs, por si só, fosse resolver ou, mesmo, controlar a criminalidade na região metropolitana do Rio de Janeiro. Isso não significa que não houvesse o reconhecimento da importância e dos méritos da iniciativa. Pode-se dizer que em várias áreas pobres da cidade melhorou a segurança da população. No entanto, o que se evidencia, de modo inescapável, é que a violência tem profundas raízes na nossa sociedade e contamina os mais diferentes setores de atividades. A corrupção está entranhada na vida social, minando iniciativas, ações e tentativas de melhorar a qualidade de vida dos habitantes do Rio de Janeiro e de outras grandes cidades. Há várias questões importantes a serem discutidas em torno das UPPs, sem ignorar os benefícios por elas trazidos. Até que ponto a presença das tropas pacificadoras, policiais e/ou das Forças Armadas, susta a violência? Certamente contém as suas manifestações mais evidentes, mas não tem condições de ir mais fundo, no enfrentamento de suas raízes. Só um projeto contínuo envolvendo, sobretudo, educação e trabalho, teria um potencial de, a longo prazo, superar a atração da criminalidade. Pois esta, não nos iludamos, é um modo de vida associado a aspirações, desejos e ambições, que correspondem a novos perfis e trajetórias sociais.

Não se trata, também, só de focalizar aqueles que são diretamente envolvidos com os crimes, pois suas ações repercutem, de várias maneiras, sobre as suas redes de relações, parentes, vizinhos e conhecidos, etc. Se, de um lado constituem uma ameaça, por outro, abrem possibilidades de um tipo de ascensão social baseado no acesso a bens de consumo e a símbolos de prestígio. É importante, assim, não esquecer do que já foi apontado por diversos autores, a carga simbólica associada ao acesso e uso de armas. O tráfico destas, não custa insistir, está indissoluvelmente vinculado ao de drogas. Outro ponto fundamental, ligado à implantação das UPPs, são os efeitos causados no aumento inegável de assaltos, roubos, seqüestros e agressões em geral às classes médias, em vários pontos da cidade. Criou-se um clima de que o protesto dessas classes médias não deve ser levado muito a sério, porque afinal de contas “tem uma situação muito melhor do que a dos pobres”. Ora, estamos falando não só de perda de bens mas, como tem ocorrido recentemente, de vidas humanas. Pois esta é uma mudança assustadora nos costumes e hábitos brasileiros. Sabemos que, historicamente, as vidas de pessoas humildes pouco valor tinham, em contextos de exploração e dominação. Mas, hoje, assistimos a uma desvalorização generalizada, fazendo com que homens, mulheres, jovens, crianças e idosos, de todas as classes, estejam sujeitos às formas mais bárbaras de violência. Infelizmente, não podemos ignorar que, em diversas situações esses crimes são praticados por pessoas das agências de segurança pública, especialmente a polícia.

Assim, quando a Presidente da República fala das prioridades de saúde, educação e segurança, é preciso que se compreenda esta última como uma área que mal foi tocada nos últimos anos. As medidas tomadas, até agora, podem aplacar alguns sintomas e indícios, mas estão longe de chegar perto do âmago das questões que a produzem.

*Antropólogo

[publicado em O Globo, em 10 de setembro de 2011]

terça-feira, 21 de junho de 2011

SISTEMAS COGNITIVOS E SISTEMAS DE CRENÇAS: Problemas de Definição e Comparação*

Gilberto Velho

I – A coexistência de diferentes sistemas cognitivos tem sido variável fundamental para caracterizar sociedades modernas, distinguindo-as daquelas em que a predominância nítida ou quase exclusividade de um sistema sublinharia sua maior homogeneidade.

Sabemos que todo sistema cognitivo é por definição complexo e, por isto mesmo, a dualidade sociedade complexa e não-complexa é, pelo menos, discutível. Uma sociedade pode estar ancorada a um sistema que consideramos único mas cuja riqueza e densidade não nos permitiria classificá-lo de simples. O caso da Índia estudado, entre outros, por Bouglé e Dumont, é um bom exemplo de um sistema social e ideológico altamente complexo que, embora não exclusivo, operou com vigorosa predominância durante séculos. No entanto, sabemos também que o hinduísmo apresentava variações, seitas, particularidades e dissidências. Até que ponto pode-se afirmar que essas diferenciações expressam um só sistema? A crença na reencarnação e nas noções de puro e impuro, a aceitação do sistema de castas poderiam ser consideradas, no caso, como pilares básicos de sustentação de uma só sociedade e cultura. Outro exemplo interessante é o da Europa Ocidental durante a Idade Média. O cristianismo constituiu uma ordem moral, uma escala de valores e um sistema de crenças bastante abrangente. Mas o trabalho de historiadores como Duby e Le Goff chama a atenção para a variedade e mesmo vigorosa diferenciação dentro do período. Há, por exemplo, conflitos dentro da Igreja e entre o clero e a aristocracia sobre a natureza do casamento e da família (ver Duby, G., 1981 especialmente Caps. I, II, III). Desde, pelo menos, o século X surgem divergências sérias entre o Papado e as nascentes monarquias com acusações, excomunhões, etc. antecipando conflitos que assumiriam proporções de rompimento séculos adiante. Há concepções e opiniões diferentes sobre moral, pecado e sobre direitos e prerrogativas dos diferentes segmentos sociais. No entanto, compartilha-se a crença em Deus e na alma, apesar das heresias e das múltiplas discussões sobre sua natureza e essência. Ou seja, existem temas e problemas comuns que são considerados importantes e cruciais. Até que ponto isto define um sistema cognitivo? O que é necessário para o estabelecimento de fronteiras nítidas que possam distinguir um sistema de outro? Parece ser precipitado igualar uma sociedade a um sistema cognitivo. Este pode atravessar ou abranger diversas sociedades e uma destas, por sua vez, pode estar ancorada a mais de um sistema.

Até agora, propositalmente, não defini o que entendo por sistema cognitivo. De certa forma, procuro me aproximar da noção com certa cautela pois está longe de ser um conceito claro e preciso. Geertz distingue a visão de mundo de ethos enquanto Bateson diferenciou eidos de ethos. Grosso modo a ênfase nos aspectos cognitivos recai em visão de mundo e eidos enquanto ethos estaria associado a estilo de vida, aspectos afetivos, estéticos, etc. Estou aproximando Geertz de Bateson sabendo que há grandes diferenças em suas abordagens mas em ambos, de alguma maneira, a dimensão cognitiva é dissociada de outras dimensões ou variáveis. Entendo que esta separação é efetivada com uma dose consciente de arbitrariedade mas obviamente não é gratuita. A dicotomia cognição x emoção é clássica no pensamento ocidental. Gostaria de frisar que nem sempre será operacional e eficiente para as nossas finalidades desde que tem um a priori que pode não se aplicar a diferentes universos culturais. Parece-me que a noção de sistema cognitivo é indissociável de sistema de crenças, e este, por sua vez, implica imediatamente em emoção, sentimento. Por exemplo, a crença em espíritos associa-se à emoção da presença do espírito e na possibilidade do transe ou da possessão. Talvez eu prefira utilizar sistema de crenças para expressar a indissolúvel vinculação entre conhecimento e emoção e/ou afetividade. Pode-se alegar que a vantagem de empregar um sistema cognitivo seja o privilegiamento da lógica que sustenta uma visão de mundo. Neste caso, por exemplo, as noções de tempo e espaço estariam mais adequadamente encompassadas pelo cognitivo. Mas tudo isto parece problemático pois subordina o que está sendo chamado de cognitivo a pressupostos de racionalidade possivelmente etnocêntricos. Será que Espaço e Tempo estariam no território do lógico por serem mensuráveis dentro de nossa cultura? Mas sabemos também que há diferentes maneiras de representar tempo e espaço em outras culturas e mesmo na nossa podem ser encontradas diferenças significativas (ver por exemplo, o trabalho de Lívia Neves de Holanda Barbosa, 1981).

Linguistas como Basil Bernstein procuram estabelecer as relações entre estrutura social, formas de linguagem e comportamento focalizando as diferenças de código dentro da sociedade moderna (Ver, por exemplo Bernstein, B.,1981). Essas implicariam, inclusive, em diferenciação ao nível do próprio processo cognitivo. A ênfase excessiva na verbalização foi criticada por autores como Hill e Vareme (1971) que chamam atenção para “...the participants para-verbal and non-verbal behaviour, their shared history and the physical and cultural worlds in wich they communicate” (op. cit. Pg.217). Com isso, relativizavam as noções de códigos restrito e elaborado mostrando, inclusive, que o silêncio também deve ser entendido como linguagem, enfatizando a importância de definição de contextos. Nos termos mencionados anteriormente parece-nos, portanto, problemática a distinção de um cognitivo específico separado de seu contexto cultural no sentido mais amplo, envolvendo aspectos afetivos, estéticos e emotivos. A própria construção de paradigmas como mostra, por exemplo, Victor Turner (1974) se dá em um processo em que as crenças estão indissoluvelmente associadas a emoções socialmente reconhecidas e valorizadas. A noção de eficácia simbólica, por sua vez, baseia-se na capacidade de envolver indivíduos e grupos de uma forma totalizante. Está aí toda a teoria de rituais trabalhando nessa direção.

II – Cabe ainda insistir como identificamos um sistema cognitivo ou de crenças? Podendo estar sendo óbvio para muitos, insisto que vejo sistema como uma noção, talvez um conceito mas, necessariamente, uma construção do observador. Ou seja um sistema, seja cognitivo, de crenças, político, econômico, etc. não é dado empiricamente. Não é um fenômeno natural. O universo social observado pode não estabelecer as mesmas distinções em domínios que o cientista social faz ao demarcar o território de suas especializações. Mas é correto falar em sistema na medida em que o pesquisador demonstre através da análise de seus dados que existem categorias, valores, temas, atividades, que se articulam, que fazem sentido uns em relação aos outros. A fronteira sempre implicará em algum grau de arbitrariedade mas, no caso, será construída a partir da avaliação de uma experiência social e dos significados a ele atribuídos por um grupo ou segmento particular. No entanto, será uma construção do pesquisador. O grau de proximidade ou de afastamento das representações vigentes no universo estudado não é, necessariamente parâmetro de correção científica. Essas serão, de certa forma, matéria prima para a análise e formulação do cientista. Enfatize-se, com todo vigor, que a descrição rica das representações e crenças em pauta é etapa indispensável para eventuais elaborações e construções teóricas mais ambiciosas. Mais ainda o modelo do investigador passa necessariamente pelas representações e modelos do grupo pesquisado.

Quando falamos, portanto, em comparação de sistemas é preciso verificar com cuidado os nossos objetivos. Podemos comparar descrições e podemos comparar modelos construídos necessariamente a partir de descrições. Para que isto se efetive com maior eficácia é necessário esclarecer e precisar um pouco melhor os conceitos e noções utilizadas, sob pena de ficarmos confundidos por uma Babel terminológica.

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* Trabalho apresentado na Mesa Redonda “Sistemas Cognitivos em uma Perspectiva Comparativa” XIII Reunião Brasileira de Antropologia, USP, abril de 1982. Publicado em Comunicação nº8, PPGAS/Museu Nacional-UFRJ, 1984.

Bibliografia:

BARBOSA, Lívia Neves de Holanda. 1981.Estações do Ano, Estudo Preliminar das Representações, Museu Nacional, Mimeo.

BATESON, Gregory. 1958. Naven: A survey of the problems suggested by a composite picture of a New Guinea Tribe drawn from three points of view. Standford, Standford University Press,2ª ed.

BERNSTEIN, Basil. 1971. “Theoretical studies towards a sociology of language”. In Class, codes and control. Londres, Routledge & Kegan Paul, v. 1.

BOUGLÉ, Celestin. 1969. Essais sur le régime des castes. Paris, P.U.F.

DUBY, George. 1981. Le Chevalier, la Femme et le Pretre. Hachette.

DUMONT, Louis. 1970. Home Hierarchicus : an essay on the caste system.

HILL, Clifford A. & VARENNE, Hervé. Family, language and Education – The sociolinguistic model of restricted and elaborated codes. Inn: Social Science Information (SAGE) 20, 1 (1981). London.

LE GOFF. Jacques.1973. Os intelectuais na Idade Média. Lisboa, Editorial Estúdios Cor.

TURNER, Victor. 1974. Dramas, Fields and Metaphors. Ithaca, Cornell University Press.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

A Destruição do Patrimônio


Gilberto Velho*


O incêndio da Capela de São Pedro de Alcântara e a destruição parcial do Palácio Universitário da UFRJ demonstram, mais uma vez, a falta de recursos e apoio de que se dispõe para proteger e preservar marcos e símbolos nacionais. A valorização de bens materiais e imateriais não é um capricho de elites, mas a tentativa consciente de sublinhar identidades, desde grupos mais restritos até a nação e mesmo, em vários casos, o mundo como um todo.

A Capela de São Pedro de Alcântara era uma jóia incrustada no Palácio Universitário da UFRJ. Esforços estavam sendo feitos para protegê-la e restaurá-la, mas foram insuficientes. A falta de meios adequados, de pessoal qualificado e de atenção dificultam, para um público leigo, a percepção da importância dessa perda. Temos muitos outros problemas graves ocorrendo no Rio de Janeiro para ilustrar essa problemática. O Jardim Botânico, a despeito de seus dirigentes, presença intensa e viva, não só de uma memória mais afastada mas de um presente vivíssimo, tem sido objeto de desqualificação, de desrespeito, colocando em risco um patrimônio histórico, cultural, arqueológico, natural, entre outros. Tem importância científica, estética e ambiental. É curioso que se tente apresenta-lo como um privilégio para poucos, em detrimento de supostos interesses sociais que estariam sendo lesados. As tentativas de se chegar a acordos e a um diálogo civilizado tem sido difíceis e poucos progressos foram obtidos.

No caso da UFRJ, é altamente louvável o esforço que tem sido feito para impedir a destruição de prédios e patrimônios fundamentais para a ciência e educação do país. Mas o episódio da capela é assustador. Faz-nos pensar nos riscos que rondam monumentos vivos e complexos, como o Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista. Nos últimos anos, obras foram feitas e medidas foram tomadas para melhorar o quadro de ameaça. No entanto, é preciso muito mais para garantir um mínimo de tranqüilidade em relação aos prédios, não só da UFRJ, mas a outros espalhados pela cidade.

A pilhagem constante, os furtos, o uso inadequado dos espaços e a ignorância bastante generalizada no que toca ao significado desses conjuntos de símbolos que articulam identidades socioculturais, em vários planos, permanecem ameaçadores, ultrapassando as frágeis defesas que se tentam erguer.

Todo o esforço deve ser dirigido para recuperar e restaurar a Capela de São Pedro de Alcântara, referência fundamental para a vida universitária, científica e cultural da cidade e do país.

*Antropólogo


[publicado em O Globo, em 02 de abril de 2011]