segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Urban Anthropology Interdisciplinarity and Boundaries of Knowledge

* Artigo publicado na revista Vibrant,v.8, n2, dezembro de 2011.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Crime e corrupção no Rio


*Gilberto Velho

Não foram muitas as pessoas que acreditaram que a implantação das UPPs, por si só, fosse resolver ou, mesmo, controlar a criminalidade na região metropolitana do Rio de Janeiro. Isso não significa que não houvesse o reconhecimento da importância e dos méritos da iniciativa. Pode-se dizer que em várias áreas pobres da cidade melhorou a segurança da população. No entanto, o que se evidencia, de modo inescapável, é que a violência tem profundas raízes na nossa sociedade e contamina os mais diferentes setores de atividades. A corrupção está entranhada na vida social, minando iniciativas, ações e tentativas de melhorar a qualidade de vida dos habitantes do Rio de Janeiro e de outras grandes cidades. Há várias questões importantes a serem discutidas em torno das UPPs, sem ignorar os benefícios por elas trazidos. Até que ponto a presença das tropas pacificadoras, policiais e/ou das Forças Armadas, susta a violência? Certamente contém as suas manifestações mais evidentes, mas não tem condições de ir mais fundo, no enfrentamento de suas raízes. Só um projeto contínuo envolvendo, sobretudo, educação e trabalho, teria um potencial de, a longo prazo, superar a atração da criminalidade. Pois esta, não nos iludamos, é um modo de vida associado a aspirações, desejos e ambições, que correspondem a novos perfis e trajetórias sociais.

Não se trata, também, só de focalizar aqueles que são diretamente envolvidos com os crimes, pois suas ações repercutem, de várias maneiras, sobre as suas redes de relações, parentes, vizinhos e conhecidos, etc. Se, de um lado constituem uma ameaça, por outro, abrem possibilidades de um tipo de ascensão social baseado no acesso a bens de consumo e a símbolos de prestígio. É importante, assim, não esquecer do que já foi apontado por diversos autores, a carga simbólica associada ao acesso e uso de armas. O tráfico destas, não custa insistir, está indissoluvelmente vinculado ao de drogas. Outro ponto fundamental, ligado à implantação das UPPs, são os efeitos causados no aumento inegável de assaltos, roubos, seqüestros e agressões em geral às classes médias, em vários pontos da cidade. Criou-se um clima de que o protesto dessas classes médias não deve ser levado muito a sério, porque afinal de contas “tem uma situação muito melhor do que a dos pobres”. Ora, estamos falando não só de perda de bens mas, como tem ocorrido recentemente, de vidas humanas. Pois esta é uma mudança assustadora nos costumes e hábitos brasileiros. Sabemos que, historicamente, as vidas de pessoas humildes pouco valor tinham, em contextos de exploração e dominação. Mas, hoje, assistimos a uma desvalorização generalizada, fazendo com que homens, mulheres, jovens, crianças e idosos, de todas as classes, estejam sujeitos às formas mais bárbaras de violência. Infelizmente, não podemos ignorar que, em diversas situações esses crimes são praticados por pessoas das agências de segurança pública, especialmente a polícia.

Assim, quando a Presidente da República fala das prioridades de saúde, educação e segurança, é preciso que se compreenda esta última como uma área que mal foi tocada nos últimos anos. As medidas tomadas, até agora, podem aplacar alguns sintomas e indícios, mas estão longe de chegar perto do âmago das questões que a produzem.

*Antropólogo

[publicado em O Globo, em 10 de setembro de 2011]

terça-feira, 21 de junho de 2011

SISTEMAS COGNITIVOS E SISTEMAS DE CRENÇAS: Problemas de Definição e Comparação*

Gilberto Velho

I – A coexistência de diferentes sistemas cognitivos tem sido variável fundamental para caracterizar sociedades modernas, distinguindo-as daquelas em que a predominância nítida ou quase exclusividade de um sistema sublinharia sua maior homogeneidade.

Sabemos que todo sistema cognitivo é por definição complexo e, por isto mesmo, a dualidade sociedade complexa e não-complexa é, pelo menos, discutível. Uma sociedade pode estar ancorada a um sistema que consideramos único mas cuja riqueza e densidade não nos permitiria classificá-lo de simples. O caso da Índia estudado, entre outros, por Bouglé e Dumont, é um bom exemplo de um sistema social e ideológico altamente complexo que, embora não exclusivo, operou com vigorosa predominância durante séculos. No entanto, sabemos também que o hinduísmo apresentava variações, seitas, particularidades e dissidências. Até que ponto pode-se afirmar que essas diferenciações expressam um só sistema? A crença na reencarnação e nas noções de puro e impuro, a aceitação do sistema de castas poderiam ser consideradas, no caso, como pilares básicos de sustentação de uma só sociedade e cultura. Outro exemplo interessante é o da Europa Ocidental durante a Idade Média. O cristianismo constituiu uma ordem moral, uma escala de valores e um sistema de crenças bastante abrangente. Mas o trabalho de historiadores como Duby e Le Goff chama a atenção para a variedade e mesmo vigorosa diferenciação dentro do período. Há, por exemplo, conflitos dentro da Igreja e entre o clero e a aristocracia sobre a natureza do casamento e da família (ver Duby, G., 1981 especialmente Caps. I, II, III). Desde, pelo menos, o século X surgem divergências sérias entre o Papado e as nascentes monarquias com acusações, excomunhões, etc. antecipando conflitos que assumiriam proporções de rompimento séculos adiante. Há concepções e opiniões diferentes sobre moral, pecado e sobre direitos e prerrogativas dos diferentes segmentos sociais. No entanto, compartilha-se a crença em Deus e na alma, apesar das heresias e das múltiplas discussões sobre sua natureza e essência. Ou seja, existem temas e problemas comuns que são considerados importantes e cruciais. Até que ponto isto define um sistema cognitivo? O que é necessário para o estabelecimento de fronteiras nítidas que possam distinguir um sistema de outro? Parece ser precipitado igualar uma sociedade a um sistema cognitivo. Este pode atravessar ou abranger diversas sociedades e uma destas, por sua vez, pode estar ancorada a mais de um sistema.

Até agora, propositalmente, não defini o que entendo por sistema cognitivo. De certa forma, procuro me aproximar da noção com certa cautela pois está longe de ser um conceito claro e preciso. Geertz distingue a visão de mundo de ethos enquanto Bateson diferenciou eidos de ethos. Grosso modo a ênfase nos aspectos cognitivos recai em visão de mundo e eidos enquanto ethos estaria associado a estilo de vida, aspectos afetivos, estéticos, etc. Estou aproximando Geertz de Bateson sabendo que há grandes diferenças em suas abordagens mas em ambos, de alguma maneira, a dimensão cognitiva é dissociada de outras dimensões ou variáveis. Entendo que esta separação é efetivada com uma dose consciente de arbitrariedade mas obviamente não é gratuita. A dicotomia cognição x emoção é clássica no pensamento ocidental. Gostaria de frisar que nem sempre será operacional e eficiente para as nossas finalidades desde que tem um a priori que pode não se aplicar a diferentes universos culturais. Parece-me que a noção de sistema cognitivo é indissociável de sistema de crenças, e este, por sua vez, implica imediatamente em emoção, sentimento. Por exemplo, a crença em espíritos associa-se à emoção da presença do espírito e na possibilidade do transe ou da possessão. Talvez eu prefira utilizar sistema de crenças para expressar a indissolúvel vinculação entre conhecimento e emoção e/ou afetividade. Pode-se alegar que a vantagem de empregar um sistema cognitivo seja o privilegiamento da lógica que sustenta uma visão de mundo. Neste caso, por exemplo, as noções de tempo e espaço estariam mais adequadamente encompassadas pelo cognitivo. Mas tudo isto parece problemático pois subordina o que está sendo chamado de cognitivo a pressupostos de racionalidade possivelmente etnocêntricos. Será que Espaço e Tempo estariam no território do lógico por serem mensuráveis dentro de nossa cultura? Mas sabemos também que há diferentes maneiras de representar tempo e espaço em outras culturas e mesmo na nossa podem ser encontradas diferenças significativas (ver por exemplo, o trabalho de Lívia Neves de Holanda Barbosa, 1981).

Linguistas como Basil Bernstein procuram estabelecer as relações entre estrutura social, formas de linguagem e comportamento focalizando as diferenças de código dentro da sociedade moderna (Ver, por exemplo Bernstein, B.,1981). Essas implicariam, inclusive, em diferenciação ao nível do próprio processo cognitivo. A ênfase excessiva na verbalização foi criticada por autores como Hill e Vareme (1971) que chamam atenção para “...the participants para-verbal and non-verbal behaviour, their shared history and the physical and cultural worlds in wich they communicate” (op. cit. Pg.217). Com isso, relativizavam as noções de códigos restrito e elaborado mostrando, inclusive, que o silêncio também deve ser entendido como linguagem, enfatizando a importância de definição de contextos. Nos termos mencionados anteriormente parece-nos, portanto, problemática a distinção de um cognitivo específico separado de seu contexto cultural no sentido mais amplo, envolvendo aspectos afetivos, estéticos e emotivos. A própria construção de paradigmas como mostra, por exemplo, Victor Turner (1974) se dá em um processo em que as crenças estão indissoluvelmente associadas a emoções socialmente reconhecidas e valorizadas. A noção de eficácia simbólica, por sua vez, baseia-se na capacidade de envolver indivíduos e grupos de uma forma totalizante. Está aí toda a teoria de rituais trabalhando nessa direção.

II – Cabe ainda insistir como identificamos um sistema cognitivo ou de crenças? Podendo estar sendo óbvio para muitos, insisto que vejo sistema como uma noção, talvez um conceito mas, necessariamente, uma construção do observador. Ou seja um sistema, seja cognitivo, de crenças, político, econômico, etc. não é dado empiricamente. Não é um fenômeno natural. O universo social observado pode não estabelecer as mesmas distinções em domínios que o cientista social faz ao demarcar o território de suas especializações. Mas é correto falar em sistema na medida em que o pesquisador demonstre através da análise de seus dados que existem categorias, valores, temas, atividades, que se articulam, que fazem sentido uns em relação aos outros. A fronteira sempre implicará em algum grau de arbitrariedade mas, no caso, será construída a partir da avaliação de uma experiência social e dos significados a ele atribuídos por um grupo ou segmento particular. No entanto, será uma construção do pesquisador. O grau de proximidade ou de afastamento das representações vigentes no universo estudado não é, necessariamente parâmetro de correção científica. Essas serão, de certa forma, matéria prima para a análise e formulação do cientista. Enfatize-se, com todo vigor, que a descrição rica das representações e crenças em pauta é etapa indispensável para eventuais elaborações e construções teóricas mais ambiciosas. Mais ainda o modelo do investigador passa necessariamente pelas representações e modelos do grupo pesquisado.

Quando falamos, portanto, em comparação de sistemas é preciso verificar com cuidado os nossos objetivos. Podemos comparar descrições e podemos comparar modelos construídos necessariamente a partir de descrições. Para que isto se efetive com maior eficácia é necessário esclarecer e precisar um pouco melhor os conceitos e noções utilizadas, sob pena de ficarmos confundidos por uma Babel terminológica.

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* Trabalho apresentado na Mesa Redonda “Sistemas Cognitivos em uma Perspectiva Comparativa” XIII Reunião Brasileira de Antropologia, USP, abril de 1982. Publicado em Comunicação nº8, PPGAS/Museu Nacional-UFRJ, 1984.

Bibliografia:

BARBOSA, Lívia Neves de Holanda. 1981.Estações do Ano, Estudo Preliminar das Representações, Museu Nacional, Mimeo.

BATESON, Gregory. 1958. Naven: A survey of the problems suggested by a composite picture of a New Guinea Tribe drawn from three points of view. Standford, Standford University Press,2ª ed.

BERNSTEIN, Basil. 1971. “Theoretical studies towards a sociology of language”. In Class, codes and control. Londres, Routledge & Kegan Paul, v. 1.

BOUGLÉ, Celestin. 1969. Essais sur le régime des castes. Paris, P.U.F.

DUBY, George. 1981. Le Chevalier, la Femme et le Pretre. Hachette.

DUMONT, Louis. 1970. Home Hierarchicus : an essay on the caste system.

HILL, Clifford A. & VARENNE, Hervé. Family, language and Education – The sociolinguistic model of restricted and elaborated codes. Inn: Social Science Information (SAGE) 20, 1 (1981). London.

LE GOFF. Jacques.1973. Os intelectuais na Idade Média. Lisboa, Editorial Estúdios Cor.

TURNER, Victor. 1974. Dramas, Fields and Metaphors. Ithaca, Cornell University Press.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

A Destruição do Patrimônio


Gilberto Velho*


O incêndio da Capela de São Pedro de Alcântara e a destruição parcial do Palácio Universitário da UFRJ demonstram, mais uma vez, a falta de recursos e apoio de que se dispõe para proteger e preservar marcos e símbolos nacionais. A valorização de bens materiais e imateriais não é um capricho de elites, mas a tentativa consciente de sublinhar identidades, desde grupos mais restritos até a nação e mesmo, em vários casos, o mundo como um todo.

A Capela de São Pedro de Alcântara era uma jóia incrustada no Palácio Universitário da UFRJ. Esforços estavam sendo feitos para protegê-la e restaurá-la, mas foram insuficientes. A falta de meios adequados, de pessoal qualificado e de atenção dificultam, para um público leigo, a percepção da importância dessa perda. Temos muitos outros problemas graves ocorrendo no Rio de Janeiro para ilustrar essa problemática. O Jardim Botânico, a despeito de seus dirigentes, presença intensa e viva, não só de uma memória mais afastada mas de um presente vivíssimo, tem sido objeto de desqualificação, de desrespeito, colocando em risco um patrimônio histórico, cultural, arqueológico, natural, entre outros. Tem importância científica, estética e ambiental. É curioso que se tente apresenta-lo como um privilégio para poucos, em detrimento de supostos interesses sociais que estariam sendo lesados. As tentativas de se chegar a acordos e a um diálogo civilizado tem sido difíceis e poucos progressos foram obtidos.

No caso da UFRJ, é altamente louvável o esforço que tem sido feito para impedir a destruição de prédios e patrimônios fundamentais para a ciência e educação do país. Mas o episódio da capela é assustador. Faz-nos pensar nos riscos que rondam monumentos vivos e complexos, como o Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista. Nos últimos anos, obras foram feitas e medidas foram tomadas para melhorar o quadro de ameaça. No entanto, é preciso muito mais para garantir um mínimo de tranqüilidade em relação aos prédios, não só da UFRJ, mas a outros espalhados pela cidade.

A pilhagem constante, os furtos, o uso inadequado dos espaços e a ignorância bastante generalizada no que toca ao significado desses conjuntos de símbolos que articulam identidades socioculturais, em vários planos, permanecem ameaçadores, ultrapassando as frágeis defesas que se tentam erguer.

Todo o esforço deve ser dirigido para recuperar e restaurar a Capela de São Pedro de Alcântara, referência fundamental para a vida universitária, científica e cultural da cidade e do país.

*Antropólogo


[publicado em O Globo, em 02 de abril de 2011]

terça-feira, 9 de novembro de 2010

A violência depois das eleições


Gilberto Velho*


Terminamos o período das campanhas eleitorais. Muitas promessas foram feitas sobre os mais variados assuntos. Ambos os candidatos, no segundo turno, enfatizaram a necessidade de priorizar o combate à violência. Há mais de duas décadas os governantes e políticos em geral sempre falam que irão resolver a questão da insegurança pública avassaladora que tomou conta do país.


Há alguns dias atrás noticiou-se, com relativa discrição que uma cabeça decapitada foi arremessada numa avenida suburbana do Rio de Janeiro, durante um período de combate entre facções criminosas. Mais recentemente, noticiou-se que durante um assalto em Búzios o bandido, insatisfeito com o resultado de sua investida, enraivecido, decepou o dedo de uma criança. O que mais impressiona é como essas notícias são dadas, já sem grande alarde, pouca perplexidade e indignação. Parece que é natural numa sociedade, como a nossa, cabeças serem atiradas no meio de uma avenida e que crianças tenham seus dedos decepados por meliantes. O fato é que o noticiário sobre crueldades e violência dos mais variados tipos banalizou-se expressando, provavelmente, um estado de amortecimento, desânimo e conformismo da sociedade em geral diante desse cotidiano brutal e, imagina-se, sob qualquer ponto de vista, assustador. Será que perdemos a capacidade de nos assustarmos e, principalmente, de reagirmos? As declarações oficiais das autoridades são, quase sempre, neutras e burocráticas. Depois de ondas de assalto como as que ocorreram no Jardim Botânico recentemente e que ocorrem em todas as áreas da região metropolitana do Rio de Janeiro ouvimos que a polícia está sempre presente e que cumpre sua rotina de vigilância e cuidado. Outras vezes diz-se que são fatos isolados. Qualquer leitor de jornal, expectador de televisão ou ouvinte de rádio sabe diariamente de assassinatos, assaltos, seqüestros e ações particularmente brutais de que são vítimas pessoas de todos os meios sociais, além das testemunhas oculares. Nos últimos dias, um médico foi executado por bandidos e um juiz com seus familiares foram baleados por policiais em operação de “fiscalização”. Não é preciso voltar a repetir a grande quantidade de moradores de favelas, comunidades e conjuntos habitacionais que estão sujeitos às balas perdidas ou direcionadas nos confrontos entre bandidos de variados tipos, milicianos e as forças policiais.


Começa um novo governo no país. A presidente eleita, publicamente anuncia que saúde e segurança pública são prioridades suas. Há de se ressaltar que os problemas de educação estão longe de serem resolvidos e que juntos formam um conjunto responsável pelo clima de insegurança em que vivemos. Espera-se uma atitude mais firme e uma política mais efetiva e complexa por parte da nova equipe que dará continuidade ao governo anterior. É de se esperar que supere amplamente as realizações desse que termina e dos anteriores no que toca à ameaça permanente de todos os tipos de violência que tornam a sociedade brasileira uma das mais arriscadas e perigosas de se viver. É indiscutível que o governo federal, e isso parece ser um ponto de vista da presidente eleita, tenha a principal responsabilidade de liderar e coordenar o esforço pela paz e segurança pública.

*Antropólogo.


[Publicado em O Globo , 09 de novembro de 2010]

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Civilidade e educação

Gilberto Velho*


Supõe-se que, por ocasião das grandes campanhas eleitorais, sejam discutidos os temas fundamentais da sociedade. No caso brasileiro estamos vivendo um período em que postulam suas candidaturas políticos com vários níveis de aspiração, desde a Presidência da República, passando pelo Senado, governos estaduais e câmaras legislativas. Estão em jogo, portanto, o poder federal e estadual.


É inescapável o comentário e a preocupação com o modo ralo e superficial como é discutida a questão da violência, mais do que evidente no melancólico primeiro debate entre os presidenciáveis. O que parece acontecer é que naturalizou-se, de tal forma, o cotidiano de insegurança pública que os políticos revelam pouco apetite, ideias e preparo para o enfrentamento desse mal que aflige todo o país. As soluções alvitradas pelos candidatos são pouco mais do que burocráticas, sem originalidade, indignação e grandeza.


Se é verdade que os dados estatísticos sobre criminalidade parecem estar baixando no Rio de Janeiro, não há como ocultar que a violência espalha-se pelo Brasil. Diariamente, temos notícias de episódios brutais e cruéis que se multiplicam por cidades e lugarejos, em todas as regiões. Isso parece não impressionar, particularmente, não só os candidatos mas, principalmente, o atual governo federal. Tem predominado uma postura de uma certa euforia diante da situação econômica do país, assim como dos resultados que indicam uma diminuição da desigualdade social.


Sem negar a grande importância desses fenômenos, fica o desafio de procurar compreender e agir diante do incontrolável surto de violência que se desloca, multiplica e metamorfoseia, sempre com novas ações, nos momentos e lugares mais surpreendentes. Parece evidente que, entre outras causas, existe uma falência do sistema educacional em todos os níveis mas, particularmente, nos ensinos básico e médio. O alardeado aumento de matrículas, por si só, está muito longe de atender às necessidades de nossa sociedade, em termos de formação intelectual e ética dos estudantes candidatos à cidadania. Embora episódios de violência de grande brutalidade manifestem-se em quase todo o mundo, é inegável que o Brasil continua sendo um dos países em que isto se dá de modo mais acentuado e sem sinais de uma melhora mais profunda. Ao lado das medidas de urgente aperfeiçoamento dos órgãos de segurança pública e do combate sistemático à corrupção que corrói toda sociedade, com particular destaque para o próprio aparelho público, há que tornar a questão da educação uma verdadeira prioridade, e não uma mera bandeira para comícios e declarações mais ou menos óbvias.


O aperfeiçoamento dos professores, o apoio às populações mais pobres e a procura de uma orientação mais sistemática que valorize a civilidade e a ética, necessariamente, precisam envolver escola e família, sabendo de sua precariedade e dificuldades na maior parte do território nacional. As famílias, não só as pobres, mas mesmo as de melhor nível econômico, carecem de uma capacidade ou vontade de valorizar qualidades como a solidariedade social, o respeito aos direitos humanos e uma consciência cívica.


O carreirismo e o consumismo assolam as camadas médias, enquanto boa parte das camadas populares vive dividida entre a luta pela sobrevivência e a aspiração por uma ascensão que se traduz em bens e símbolos de status. Os meios tendem a ser desprezados, diante de finalidades que giram em torno de um tipo de êxito e sucesso em que não há espaço para o compromisso com conquistas seculares de um patrimônio cultural humanista cada vez mais desvalorizado.


Faltam, de modo clamoroso, na atual campanha eleitoral, a percepção e a formulação de políticas de longo prazo, não imediatistas, que estejam efetivamente voltadas para os direitos humanos e de cidadania, no sentido mais amplo. Isto teria que passar, necessariamente, por uma transformação radical, talvez revolucionária, do sistema educacional que mobilizasse a sociedade e o poder público em torno de objetivos e compromissos baseados em ética, civilidade e justiça.


* Antropólogo


[Publicado em O Globo, 15 de agosto de 2010]

segunda-feira, 31 de maio de 2010

O consumo de psicoativos como campo de pesquisa e de intervenção política



Entrevista concedida por Gilberto Velho a Maurício Fiore*



A obra do antropólogo Gilberto Velho é referência no campo da antropologia urbana brasileira. Embora nunca tenha se restringido a um único campo de pesquisa, estabelecendo um percurso intelectual marcado pelo pioneirismo em diversos temas, tratou do fenômeno do consumo de substâncias psicoativas nas classes médias urbanas em sua pesquisa de doutoramento, trabalho que é, sem dúvida, um dos mais importantes de sua carreira. E a importância de Nobres e Anjos não se esgota nas perspectivas de um novo campo de pesquisa que abriu: um rico material de campo, sensivelmente coletado, articula-se a uma análise capaz de transitar por referências teóricas diversas, notadamente com o interacionismo simbólico norte-americano, naquele momento ainda pouco conhecido no Brasil. Essas qualidades fazem de Nobres e Anjos um marco da pesquisa sobre consumo de psicoativos nas Ciências Sociais. A pesquisa, que em 2005 completou trinta anos, teve, e continua tendo (só foi publicada em 1998) um impacto importante: o trabalho de Velho sentenciou de forma capital, no âmbito das Ciências Sociais, uma abordagem dos consumidores de substâncias psicoativas ilícitas a partir de uma generalização patologizante. Além disso, deve-se ressaltar a importância política das críticas à concepção proibicionista, mundialmente hegemônica, que, nesse e em outros trabalhos de Gilberto Velho, teve suas principais fundamentações teóricas questionadas. Nessa entrevista, realizada em seu apartamento, no bairro de Copacabana, cidade do Rio de Janeiro, em outubro de 2005, Gilberto Velho discute a importância do consumo de psicoativos em sua trajetória intelectual, expõe suas principais idéias e aponta para a urgência de uma intervenção política.



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MAURÍCIO FIORE – Em 2005, a defesa da tese Nobres e Anjos [1] completou trinta anos. Aproveitando essa efeméride, você poderia falar um pouco sobre o contexto de produção da tese, em meio à ditadura e num momento no qual a antropologia urbana ainda se consolidava em São Paulo e no Rio de Janeiro. Enfim, em poucas palavras: por que o tema?



GILBERTO VELHO – Na realidade são diversas variáveis. Num plano, o Nobres e Anjos (1998) é um desdobramento da minha dissertação de mestrado, A Utopia Urbana,[2] uma pesquisa sobre um setor de camadas médias da Zona Sul do Rio de Janeiro, basicamente em cima do caso copacabanense. A pergunta básica da dissertação de mestrado era em torno da decisão de morar em Copacabana. Foi uma maneira que encontrei de entrar no universo sociológico e numa visão de mundo, colocando através dessa pergunta uma série de possibilidades para perceber alguma coisa de uma espécie de um ethos e, ao mesmo tempo, fazer uma etnografia do prédio em que eu morei durante um ano e meio, através de observaçãoparticipante com moradores de Copacabana. Eu acionei alguns alunos meus de graduação na época, que me ajudaram muito generosamente, aplicando questionários em outros prédios. Então, na realidade, a primeira entrada é o estudo sobre camadas médias, área não só praticamente inexplorada no Brasil até então, mas também em termos internacionais, já que havia muito pouca coisa. Na divisão intelectual do trabalho das Ciências Sociais, as camadas médias não eram bem a área da antropologia e eu, por diversas razões, considerei que não havia nenhum motivo para não ser. Inclusive por causa do regime militar, porque eu achava que uma das coisas que precisavam ser feitas para tentar compreender como é que nós tínhamos chegado ao golpe de 1964, e ao apoio que o golpe teve por parte de setores importantes, sobretudo das camadas médias, era aproximar-se delas com outro olhar. Não simplesmente dizer que camadas médias ficavam entre os trabalhadores, a classe operária e as oligarquias, as elites; era necessário entender mais as camadas médias em sua complexidade, em sua heterogeneidade, em seus variados estilos de vida. Então, A Utopia Urbana correspondeu a uma primeira etapa; Nobres e Anjos, em seguida, corresponderia a um outro segmento de camadas médias, um outro setor, outro conjunto. Aí sim, as camadas médias que chamaríamos hoje precisamente de altas, na fronteira das elites. As camadas médias, como estão descritas no livro, tanto em termos de status como em termos de renda, numa posição bastante superior em relação ao que eu tinha estudado em Copacabana antes. Então havia, portanto, esse eixo que era o estudo de camadas médias. Mas entre a dissertação de mestrado e a tese de doutoramento, eu fui para os EUA. Fui em 1971 e passei um ano, tanto fazendo cursos na Universidade do Texas, em Austin, que era e ainda é um grande departamento de antropologia, como fazendo pesquisa, sobretudo na Nova Inglaterra, no verão, com portugueses, especialmente açorianos. Entre os cursos que fiz em Austin, um foi particularmente importante: um curso de um professor chamado Ira Buchler, que tinha o título de Etnografia dos hospitais psiquiátricos e prisões. Esse curso foi muito importante. Eu já conhecia alguma coisa do Goffman, [3] mas a partir daí eu o li muito mais, além de uma série de outros autores que eu não conhecia, apenas tinha ouvido falar, entre os quais está o Howard Becker, [4] que eu realmente não conhecia. Aqui no Brasil, esse autor não era lido (depois o Juarez Brandão Lopes, na defesa da minha tese, falou que o tinha conhecido). Eu gostei muito do trabalho dele e já na minha dissertação de mestrado eu tinha lidado claramente com situações de estigma, de acusação e de desvio. Isso foi construindo um segundo eixo: o estudo da transgressão, do desvio, do comportamento desviante. Assim, eu cheguei à temática de Nobres e Anjos, que era um estudo de camadas médias e altas, elitizadas, de status social, de prestígio e, ao mesmo tempo, uma dimensão de vanguarda não só artística/intelectual, mas no sentido de que eram pessoas ligadas a uma série de interesses não só no Brasil, mas internacionais, que correspondiam aos seus modos de utilização de drogas. Ou seja, usavam maconha, muitos, mas nem todos, usavam o LSD e algumas variantes, depois a cocaína, mas, e isso era o mais interessante para mim no início, tentar entender esse tipo de uso: não é a droga em si, mas são os usos da droga que importam; o que tem significado sociológico, antropológico, é o uso da droga. Através desses grupos que eu estudei nessa fase fui, justamente, tentar perceber como poderiam se estabelecer vínculos entre os usos de drogas e os modos de vidas, visões de mundo, ethos. Nobres e Anjos correspondeu ao encontro desses dois eixos. De um lado uma preocupação com status, estratificação, com classe, com visão de mundo, com uma vertente marxista/weberiana, digamos assim e, de outro lado, uma vertente ligada à questão da transgressão e do desvio, mais simmeliana/interacionista. [5] Hoje em dia isso está muito mais claro para mim, do que propriamente no início.



MAURÍCIO FIORE – A junção desses dois eixos, na época, não era comum. As Ciências Sociais eram muito mais pautadas pelos eixos de classe e status. A abordagem do desvio e da transgressão era bem recebida? Qual foi o impacto acadêmico desses seus trabalhos?



GILBERTO VELHO – Havia um plano original que, chegando nos EUA, todos os cursos que eu fizesse, os créditos, seriam utilizados para o doutorado no Museu Nacional, que estaria sendo criado. Acontece que houve uma crise institucional no Museu e esse doutorado não foi criado. Diante disso, por sugestão de Roberto Cardoso de Oliveira, meu amigo, que era o diretor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) inicial, eu cheguei à professora Ruth Cardoso, que foi esplêndida, que se interessou imediatamente pelo tema, com quem tive um diálogo extremamente fácil, feliz e fluente. Eu ia desenvolvendo minha pesquisa e de vez em quando nos encontrávamos, conversávamos... é até engraçado, na época em que ela estava exercendo o papel de primeira-dama, [6] chegou, em mais de uma oportunidade, a fazer declarações a favor da descriminalização, e eu não pude deixar de me lembrar de nossas conversas nos anos 1970 sobre drogas. É claro que havia um sabor um pouco herético nessa investida, mas eu já tinha experiência com heresia no estudo de Copacabana. Eu tinha uma inclinação um pouco herética de usar a Antropologia para estudar Copacabana e depois então para trabalhar com a questão da droga. É claro que a questão da droga tinha uma outra vertente que era o fato de estarmos mais uma vez em um regime militar e havia um problema de ser uma atividade ilegal, quando não criminosa. Então isso exigia cautela, prudência, estratégias nem sempre muito simples. Aí vem uma questão, que é uma questão que acompanha meu trabalho quase desde o início, que eu expressei num artigo meu chamado Observando o familiar. [7]



MAURÍCIO FIORE – Esse, aliás, era um tema que eu queria entrar, a questão do distanciamento e da familiaridade...



GILBERTO VELHO – Essa é uma das questões que sempre me interessou. Tive até um debate saudável com o Roberto Da Matta quando escrevi Observando o familiar, principalmente porque o meu ponto é que alguma coisa ser familiar não significa que ela seja conhecida e que, portanto, para você estudar o familiar, você tem que desenvolver uma estratégia própria de objetivação, de estranhamento, de distanciamento, nem que seja num movimento de ir e vir, mas que é fundamental. A Antropologia tinha esses instrumentos, os meios e a bibliografia, não porque estabelecia um compartimento estanque em relação à Sociologia, mas porque havia uma tradição antropológica que permitia, através da etnografia de certas temáticas (cosmologia, representações, família e parentesco, por exemplo), entrar e investigar esse próximo, esse tão-próximo assim. Havia esse sabor levemente herético, mas as coisas correram muito bem em geral. A Utopia Urbana, quando publicado, foi muito bem recebido, teve até um relativo sucesso mercadológico, o que na época era surpreendente. E o Nobres e Anjos... foi um bela banca, uma banca de alto nível, houve debate, houve discussão...



MAURÍCIO FIORE – Eunice Durham...



GILBERTO VELHO – Eunice, Juarez Brandão, além de Ruth Cardoso, Peter Fry e Mario Bick, que era um professor-visitante norte-americano e tinha um certo conhecimento dessa literatura. E, antes da defesa, eu já tinha sido convidado pelo Howard Becker – isso é um outro lado interessante – para ir aos EUA, porque eu tinha publicado uns dois ou três anos antes aquela coletânea Desvio e Divergência, um ano depois de A Utopia Urbana. E o Desvio e Divergência foi um sucesso editorial maior ainda, [8] porque era uma temática nova, uma coisa de política do cotidiano, tinha Becker, tinha Goffman, tinha Foucault, era realmente uma mudança de perspectiva, era o dia a dia, discutindo homossexualismo, drogas...



MAURÍCIO FIORE – Tanto do ponto de vista temático como do ponto de vista analítico, pois ele sofisticava um olhar ainda muito calcado em classe e Estado.



GILBERTO VELHO – Esse livro continua sendo reeditado e, na época, esse livro causou bastante impacto. Ampliou as relações da Antropologia com a área psi, eu e depois alguns alunos meus, que seguiram caminhos próprios, como o Luís Fernando Duarte, investiram nessa relação com a área dos estudos psíquicos (psicologia, psicanálise e psiquiatria) e o que ocorreu foi que um americano da Fundação Ford gostou muito do livro e por coincidência era amigo pessoal do Howard Becker. Mandou o livro para o Becker, que lia espanhol, fez um esforço, gostou e me convidou para ir para Northwestern, para ser visiting scholar naquela universidade. Defendi minha tese em dezembro de 1975 e em janeiro de 1976 eu já estava em Evanston, onde fica a Northwestern.



MAURÍCIO FIORE – Trabalhando com o Becker diretamente?



GILBERTO VELHO – Trabalhando diretamente com o Becker. Desde então, tornamonos associados, até hoje, obviamente numa relação de outra ordem, mas mantemos intercâmbio de estudantes, vindas dele aqui, idas minhas para lá e ele divulgou parte de nossa produção. No final dos anos 1970 eu publiquei dois artigos na revista Social Problems, [9] muito importante para o a escola interacionista e em outras revistas também. É como se através dessas etapas nós estivéssemos ampliando e criando novas frentes de investigação para o que nós chamamos imprecisamente de Antropologia das Sociedades Complexas. Não é só Antropologia Urbana porque não é apenas a cidade que está em jogo, é uma Antropologia das Sociedades Complexas, uma Antropologia das Sociedades Contemporâneas...



MAURÍCIO FIORE – A cidade não só como lugar mas como espaço público...



GILBERTO VELHO – Exatamente. E a interação, os estudos de redes, aí também uma outra tradição sempre muito importante para mim foram os estudos britânicos de social networks [10], com Clyde Mitchell, Elizabeth Bott, Gluckman, Turner, todos foram muito importantes para mim. E também usei muito a produção da “Escola de Chicago”, [11] acho que sou uma das pessoas que conhece razoavelmente bem a produção dessa Escola, mas isso não chegou a se constituir numa filiação.



MAURÍCIO FIORE – Na sua obra parece ter um esforço muito grande, ao mesmo tempo em que não se filia automaticamente, no sentido de que não comprar o “pacote”. Parece haver um esforço na utilização de diversos autores, por quê?



GILBERTO VELHO – É programático. É um estilo pessoal e eu acho que tem a ver com a minha noção do que seja o trabalho intelectual: ele deve procurar somar, juntar, compatibilizar na medida do possível. Evidentemente, existem algumas coisas que não são compatibilizáveis, algumas até são totalmente incompatíveis. No entanto, certamente eu não trilho o caminho de cultivar incompatibilidades, cultivar antagonismo entre escolas, entre correntes. Eu acho que existe muita complementaridade, muitas coincidências, muitas coisas que estavam sendo ditas pela Escola Sociológica Francesa ao mesmo tempo em que eram ditas por autores alemães, autores americanos. Autores americanos como William James, como o próprio William I. Thomas, os fundadores da Escola de Chicago; enquanto isso, mais ou menos simultaneamente você tem, na Alemanha, Weber e Simmel e, na França, Durkheim e, depois, Mauss...



MAURÍCIO FIORE – A complexidade dos objetos exige que você esteja aberto...



GILBERTO VELHO – E você acaba descobrindo que, se em muitos casos havia invenção independente, por outro lado havia relações que eram pouco conhecidas. Não é pouco conhecido, aliás, é bastante conhecido o fato de que o Durkheim e o Simmel se correspondiam. O Robert Park, um dos autores mais importantes da Escola de Chicago, foi aluno do Simmel. O Simmel foi muito traduzido nos EUA, o Weber viajou para os EUA. Existiam relações. Você não é a primeira pessoa que faz essa observação, há uma tentativa de juntar traduções, estilos, em nome de objetos diversificados, numa temática que é muito ampla. E essa questão clássica indivíduo e sociedade... agora mesmo eu estava relendo esse último livro do Sahlins [12] e é uma questão que permanece extremamente atual, não está resolvida. “Acabou essa problemática, o indivíduo está dissolvido na sociedade”, é mais complicado do que isso. É uma tensão constitutiva do campo.



MAURÍCIO FIORE – Você considera, então, problemática a idéia de filiação teórica? Porque, ao que parece, nós caminhamos para uma especialização das ciências humanas, comprando um pouco os modelos das ciências exatas e biológicas?



GILBERTO VELHO – Eu falei um pouco sobre isso no encontro da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) de 2004: você deve manter uma certa abertura, um reconhecimento de que certos temas são constantes, que se reapresentam de modos distintos, mas que são constitutivos da área; é preciso saber reconhecê-los. Há novidades, é claro. Mas existem certos temas que vão nos acompanhar sempre.



MAURÍCIO FIORE – Me parece haver uma certa estigmatização do pesquisador que se dedica ao tema do consumo de psicoativos nas Ciências Sociais. Mesmo que Nobres e Anjos não tenha sido um trabalho específico sobre drogas, na época você sentiu de alguma forma esse estigma, naquela linha do preconceito vinculado ao objeto: homossexualismo é estudado por homossexuais, relações raciais por negros, uso de drogas por “drogados”? Eu percebo um pouco esse estigma, ainda que se apresente na forma de piadas, de comentários...



GILBERTO VELHO – Eu, pessoalmente, não sofri diretamente, mas sei que isso existia em relação a outras pessoas que vieram a estudar. É claro sempre existe alguma reação ou um preconceito com relação a um tema novo. São inúmeros exemplos. Eu me lembro quando meu aluno Hermano Vianna veio me procurar para estudar funk, eu não tinha idéia da importância do funk, mas ele me explicou, eu acreditei, foi notável, foi um trabalho magnífico. [13] Não só ele como aluno, mas eu como orientador, as pessoas olhavam com uma certa desconfiança, um tema “desimportante”, uma coisa grosseira, alienante, algo nessa linha. Nós estamos sempre sujeitos a isso. Claro que o tema das drogas sempre suscitou alguma ambigüidade, mas avançamos muito com relação a isso. Quer dizer, se você ainda sente esse tipo de coisa, pode ter certeza que muita coisa se fez e avançou-se com relação à abertura. Eu nunca me senti diretamente desqualificado, com piadinhas sobre uso de “drogas”.



MAURÍCIO FIORE – E no sentido de não conferir legitimidade ao tema, como se não fosse relevante?



GILBERTO VELHO – Não propriamente assim. Porque foi pela maneira como eu tratei o tema, eu não era um especialista em drogas, pura e simplesmente, isso sempre ficou muito claro. Quer dizer, eu estava estudando drogas como um meio, um instrumento para o estudo de questões mais amplas. Aliás, eu acho que para todos vocês que estão trabalhando com esse tema também, não deve haver uma obsessão com a droga em si. A droga é um assunto por si só rico, importante, que merece ser estudado, pois se ele é bem estudado, te permite abrir para uma série de outras áreas. Então, estudar drogas é estudar a sociedade. O uso de drogas é um fenômeno universal, em todas as sociedades existe alteração do estado de consciência, toda sociedade lida com isso, pode lidar mais ou menos deliberadamente, pode lidar através de rituais explícitos, claros, ou talvez não necessariamente tão explícitos; mas em qualquer sociedade, através de música, através de festa, através de religião, há situações nítidas de alteração de estado de consciências sistemáticas, com passagens de um estado para o outro. Isso é um fenômeno universal e quando você vai estudar drogas na sociedade moderna e contemporânea, você vai estudar uma dimensão dessa problemática mais geral: como, na sociedade moderna e contemporânea, se utiliza a droga, que grupos utilizam, como utilizam, como vêem o uso da droga, como negociam o uso da droga com outros grupos, como se dá esse grande drama do conflito permanente ligado à questão do uso e consumo de drogas? Só isso, só o fato de haver esse conflito justifica plenamente qualquer nível teórico, sociológico ou antropológico, para investigação.



MAURÍCIO FIORE – O Nobres e Anjos é muito interessante porque revela, para além da questão do uso de drogas, dimensões importantes das visões de mundo, do ethos da classe média naquele momento.



GILBERTO VELHO – Esse tema não só levanta questões relevantes para as Ciências Sociais num sentido mais restrito, como levanta questões filosóficas e políticas. A problemática da liberdade, questões éticas, as questões dos projetos individuais, a questão do prazer. Por que as pessoas usam drogas? Obviamente que uma das razões das pessoas usarem drogas é porque elas são prazerosas, ou são definidas como sendo prazerosas. Os grupos que utilizam drogas definem, bem na linha do Howard Becker, de algum modo, que elas são boas, que elas são fonte de prazer, satisfação, realização. No grupo que eu estudei, sobretudo os “nobres”, naquela época, evidentemente, e podemos conversar sobre as diferenças de lá para cá, havia muito nitidamente uma idéia de auto-aperfeiçoamento, de autodescoberta. Com a maconha também, mas sobretudo com o ácido, a idéia de que a maconha pacificava, a maconha era uma coisa que ajudava a sociabilidade, que relaxava, isso tudo dentro de uma visão muito crítica da repressão, fosse do Estado autoritário fosse das famílias. Você tinha a possibilidade de, não só pela maconha, mas, sobretudo, pelo ácido, através das famosas “viagens”, descobrirse; alguma coisa ligada, ou paralela, ou suplementar, à psicanálise.



MAURÍCIO FIORE - A idéia de autoconhecimento...



GILBERTO VELHO – De autoconhecimento, mas tinha também um sentido cósmico, olhar o mundo de outra maneira, de ver cores diferentes, de ouvir sons, perceber o crescimento das plantas, enfim... um autor importante na época, não nos esqueçamos, sobretudo através do seu primeiro livro, The Teachings of Don Juan, era o Carlos Castaneda. [14]



MAURÍCIO FIORE – Era muito lido na época.



GILBERTO VELHO – Era lido, mas sobretudo era falado (risos). Algumas pessoas leram, mas falava-se muito no Castañeda. Nessa época, nesse setor social, havia a idéia de que o uso de drogas era uma coisa importante tanto em relações de sociabilidade, de relação entre pessoas, como em termos de criação. Algumas pessoas eram artistas, vários eram intelectuais, então havia a idéia de que eram modos de facilitar ou estimular a criatividade.



MAURÍCIO FIORE – Eu não gosto de dizer que hoje a questão é mais complexa, afinal ela era e sempre foi, mas houve uma difusão do consumo, com o aparecimento de outros psicoativos. As variáveis principais, quer dizer, aquelas com as quais você trabalhou, as cisões geracionais, de escolaridade, de grupos que procuravam se legitimar, como os nobres em relação aos anjos, que já preferiam algo mais hedonista, ligado ao corpo, lúdico. Quais variáveis estariam operando hoje, quais as dimensões que permaneciram relevantes, ou o tema é complexo demais para admitir generalizações?



GILBERTO VELHO – Algumas drogas continuam sendo as mesmas, introduziram-se várias coisas novas e sintéticas, que estão sendo usadas por parte dos setores da juventude, por alguns setores, porque não são todos. E existe uma variedade muito grande, tanto em termos de substâncias como em termos de tipos de uso. Se você vai comparar as Raves de classe média e de elite com o uso da maconha e da cocaína nas favelas e periferia, claro que os usos são muito diferenciados. O que houve realmente de fundamental, e que alterou o significado de tudo isso, foi a criminalidade apossar-se e utilizar-se das drogas, através do tráfico, como fonte fundamental para o seu crescimento. Esse é o grande fator diferenciador. É claro que naquela época havia transgressão... mas a quantidade envolvida, os tipos de transação eram de outra natureza. As pessoas compravam através de intermediários que iam ao morro, ou às vezes as próprias pessoas iam ao morro. Ou às vezes não tinha nem o morro envolvido...



MAURÍCIO FIORE – O par drogas/violência, me parece, não era um padrão.



GILBERTO VELHO – E o que aconteceu foi que droga associou-se à arma, essa que é a grande questão. O tráfico de armas está associado ao tráfico de drogas. O uso quase que pastoril da maconha, esse sentido que, embora não fosse ingênuo, porque na época isso era objeto de repressão, era proibido, era ilegal, mas era um tipo de protesto que se fazia num plano muito pacífico. Tinha a questão da contra-cultura, que é fundamental, o famoso “paz e amor”, a cultura hippie, tudo isso. Entretanto, de uns vinte e cinco, trinta anos para cá, com a proibição das drogas, e com as drogas se tornando mais conhecidas, se disseminando com a globalização, nós assistimos a montagem de uma gigantesca máquina criminosa que não é só de traficantes de drogas, é uma máquina criminosa que se não for lidar com droga vai lidar com outra coisa, se não é droga é arma, é arma junto com droga.



MAURÍCIO FIORE – Na verdade, as drogas potencializaram os lucros de uma forma incrível.



GILBERTO VELHO – Sem dúvida nenhuma. Mas, enfim, são redes criminosas que existem, que se multiplicaram e que fizeram da droga uma de suas principais fontes, de seus motores. O que as pessoas confundem, às vezes porque querem confundir, que não é a droga em si que produz a violência e a criminalidade; existe uma máquina, um sistema criminoso, dividido e fragmentado – não sabemos como e quanto, o grau de coordenação do tráfico de drogas, pouca gente realmente sabe – e também porque esse tráfico de drogas e armas só é possível com algum tipo de cumplicidade do aparelho de Estado, ou seja, basicamente setores importantes da polícia. Quer dizer, grande parte da polícia é corrupta. Eu acho que nesse artigo, O estudo do comportamento desviante: a contribuição da Antropologia Social, [15] eu já trazia algumas das novas reflexões que pude desenvolver a partir de minhas leituras nos EUA, das próprias pesquisas que fiz. A pesquisa que fiz com os açorianos na Nova Inglaterra foi muito interessante, eu lidei com jovens açorianos em situação de transgressão...



MAURÍCIO FIORE – Eles eram criminosos?



GILBERTO VELHO – Não, eles eram usuários de drogas. Todas as leituras que tinha feito nesse período fizeram com que esse artigo, que abre Desvio e Divergência, já traga algumas das principais questões que vão aparecer e ser desenvolvidas. De fato, quando se pensa no Nobres e Anjos, é interessante também pensar no A Utopia Urbana e depois no Desvio e Divergência, nesse artigo especificamente. Tem outro artigo que publiquei na época, que também aparece no Desvio e Divergência que já tinha publicado antes na Revista América Latina, é o Estigma e comportamento desviante em Copacabana, que também já foi publicado nos EUA. E aí toda essa problemática da acusação e do desvio, porque também junto à literatura interacionista a uma literatura que se preocupou com a acusação, basicamente da Antropologia Social britânica, desde Evans-Pritchard [16] até Mary Douglas. [17] Essa bibliografia é fundamental até hoje, ela é extremamente válida e importante, porque se tratam de acusações, naquele caso basicamente a respeito de feitiçaria. Mas voltando ao contemporâneo, a grande mudança é essa, é uma máquina. Máquina dá a impressão de uma coisa muito organizada, eu não sei se é uma máquina, mas é um mundo da criminalidade, são as redes criminosas.



MAURÍCIO FIORE – Há um outro importante artigo seu a respeito de duas categorias de acusação importantes na sociedade brasileira, “drogado” e “subversivo”, [18] que eu gosto muito porque, embora isso já tenha sido colocado em Nobres e Anjos, é explorada a percepção social do uso de drogas. A categoria de acusação “drogado”, naquele momento, era basicamente patologizante, ligada à idéia de doença. Hoje em dia, com uma máquina criminosa montada, a categoria “drogado” fica indissociável de violência?



GILBERTO VELHO – A acusação que se faz é que o usuário é cúmplice da violência, e isso é acionado por diversos atores: “Ipanema brilha à noite”, que foi dito por aquele chefe de polícia...



MAURÍCIO FIORE – Hélio Luz...



GILBERTO VELHO – O tempo todo se diz é isso: “o problema é o consumo, se as classes médias, as elites não consumissem...” Não é bem assim, a coisa é mais complicada. Eu gostaria de dizer o seguinte: como tomada de posição, eu sou, por mais que eu saiba que seja uma coisa complicada, difícil, politicamente cheia de tensões e de conflitos, eu sou a favor da legalização do uso de drogas. Evidentemente, para isso ser eficaz, tem que ser uma campanha em nível mundial, a gente não vai conseguir legalizar nunca o uso de drogas no Brasil isoladamente. Agora, legalização não significa liberação. Legalização não deixa de ser uma forma de controle social, trazer para a lei. Por isso você está sublinhando um respeito à liberdade individual: se a pessoa quiser plantar a sua maconha tranqüilamente tem o direito, se a pessoa tiver um cigarro de maconha na rua não poder ser presa, maltratada ou chantageada por conta disso. E, por outro lado, é um golpe na criminalidade, porque ela existe em função de ser proibido. É de um mercado negro que estamos falando. É utópico, é, mas nós temos que apresentar algum tipo de perspectiva, porque a proibição, a ilegalidade das drogas, de todas, do jeito que é, a visão policial do fenômeno, é absurda de qualquer ponto de vista. Primeiro é absurdo porque fere princípios básicos dos direitos, até dos direitos de cidadania. Segundo, porque alimenta a criminalidade.



MAURÍCIO FIORE – Seriam essas as duas esferas principais: a liberdade individual e não alimentar a criminalidade?



GILBERTO VELHO – Sim. Se algum dia, imaginemos – por mais utópico que pareça – que as drogas fossem legalizadas (e, repito, não liberadas), com algum tipo de controle, porque obviamente as drogas são diferentes....



MAURÍCIO FIORE – Como há com o álcool...



GILBERTO VELHO – Exatamente. Há vários tipos de drogas, há muitas experiências feitas no mundo todo para você poder imaginar isso. O que os criminosos vão fazer? Vão inventar outras fontes, quer dizer, o problema é que isso esvaziaria, tiraria um objeto importante para a ação criminosa, mas a questão é a das redes criminosas. Redes criminosas misturadas com setores do aparelho de Estado e com setores sociais que aparentemente estão na legalidade. A atuação da criminalidade atravessa todas as fronteiras das sociedades. As pessoas têm negócios oficiais, públicos, aparentemente limpos, que fazem lavagem de dinheiro o tempo todo. A lavagem de dinheiro é um dos instrumentos básicos do nosso sistema.



MAURÍCIO FIORE – Especula-se até que a retirada desse dinheiro do mercado poderia ocasionar um colapso financeiro.



GILBERTO VELHO – Exatamente. A lavagem de dinheiro constitui o sistema, não é uma coisa marginal, secundária. Então a grande questão é você enfrentar a criminalidade nessa esfera, que envolve a luta contra a corrupção, que não é só a corrupção da polícia, temos que ser justos – nem toda a polícia é corrupta – e não é só a polícia. São várias instâncias, inclusive o poder judiciário, vários setores da burocracia, dos bancos oficiais, da Receita, são várias áreas. O que a gente vive hoje em dia é que a corrupção constitui o sistema. A droga, em si, é um combustível importante na medida em que se transformou numa coisa altamente valorizada e disseminada. Porque, por exemplo, na época do Nobres e Anjos (primeira metade da década de 1970), a cocaína era um artigo de luxo, servido em bandejas de prata. Hoje em dia, a cocaína, seja lá que tipo for, misturada com talco, seja lá o que for, é um consumo de massa, utilizada pelas camadas populares. Agora, essa coisa do tipo Rave, as novas químicas, outros psicoativos poderosos que existem por aí, festas de embalo, o que é interessante para mim é perguntar: a que tipo de ethos estão associados? Uma questão chave para nós antropólogos, e sociólogos também, evidentemente, é a discussão sobre individualismo: que projetos estão em jogo? Que tipo de projeto associa-se a esse estilo de vida, é um hedonismo, é um narcisismo, ou não, ou está perfeitamente associado a um individualismo produtivista, pessoas que trabalham, ganham dinheiro, estudam, fazem tese e também usam determinadas drogas em determinados horários?



MAURÍCIO FIORE – Isso é extremamente complexo, as pessoas continuam fumando maconha e também utilizam outras drogas, esse repertório parece muito amplo...



GILBERTO VELHO – O Becker, na primeira vez que veio ao Brasil, circulou comigo pelo Rio de Janeiro e achou fascinante. Ele inventou uma nova categoria polydrug abusers, pessoas que usavam diversas drogas: fumavam maconha, cheiravam cocaína, tomavam ácido; isso no final dos anos 1970.



MAURÍCIO FIORE – E que hoje é mais comum ainda?



GILBERTO VELHO – Mas não foi inventado agora, talvez fossem grupos mais restritos. Agora, se a droga faz mal? Tudo faz mal a partir de uma determinada quantidade e fora das regras do grupo. Isso é uma lição básica: as drogas são consumidas dentro das regras de uma espécie de cultura, a cultura da droga.



MAURÍCIO FIORE – Sobre essa questão das sanções sociais, diversos pesquisadores têm frisado que os controles sociais seriam mais eficazes que os formais e/ou legais.



GILBERTO VELHO – Não tenho a menor dúvida. Remeto mais uma vez ao artigo do Becker, “Becoming a marijuana user”. [19] As pessoas aprendem a usar drogas e têm determinadas regras, quer dizer, em todos os grupos que investiguei ou conheci havia uma etiqueta, havia um determinado limite que não poderia ser ultrapassado; as pessoas não poderiam se tornar inconvenientes. E havia maneiras de lidar quando a pessoa perdia, ou parecia que ia perder, certo tipo de controle, ou seja, não é o uso desabusado simplesmente. O que pode acontecer é que algum indivíduo possa fazer um uso descontrolado, mas isso pode acontecer com qualquer coisa, não é verdade? É claro que você tem que pensar na questão do álcool: vai proibir o álcool?



MAURÍCIO FIORE – Já foi tentado [20]...


GILBERTO VELHO – Pois é, foi um período em que o crime cresceu brutalmente e quando acabou a proibição, diminuiu. Eu não sou um fantasista, eu sei como seria complicado legalizar drogas no Brasil, mas você não pode, por causa disto, deixar, pelo menos em termos cognitivos, de dizer. Qual é o dano social advindo do uso de maconha por parte de jovens em uma festa no sábado à noite? Qual o mal? Mas aí vem a teoria da escalada, que é a coisa que tem que ser combatida. Pode haver escalada em um caso ou outro, mas não é uma escalada, é um experiência, uma história de vida, não é um modelo geral. Têm pessoas que usam maconha e nunca usaram cocaína. E outra coisa importante, embora muita gente use maconha, muita gente use cocaína, tem muita gente que não usa maconha nem cocaína. Estou falando da juventude, eu continuo fazendo pesquisa sobre juventude. Têm muitos jovens que não usam cocaína, mesmo, e conheci vários que nunca fumaram um cigarro de maconha, juventude universitária, o que poderia parecer quase espantoso. Mas existem essas pessoas e existem os que fumam uma vez ou duas, numa festa, e continuam cumprindo suas tarefas e seus papéis sociais. Isso não é uma novidade. Há uns trinta anos, uma pesquisa da Harvard Medical School, ao invés de buscar aqueles usuários que apareciam nas instituições psiquiátricas, em crise, passando mal em hospitais, foi buscar, através de contatos, protegendo em segredo a identidade, usuários anônimos. Eram pessoas casadas, que tinham suas casas, que tinham filhos em alguns casos, trabalho, eram pessoas produtivas, artistas ou intelectuais dos mais variados tipos. Então essa pesquisa era voltada para isso, embora tenha uma pontinha do iceberg que são as pessoas que vão parar nas instituições...



MAURÍCIO FIORE – E que podem parar lá por outros motivos?



GILBERTO VELHO – Exatamente. Pessoas do mais variados tipos e que imediatamente são classificados como usuários de drogas.



MAURÍCIO FIORE – Muito se fala na legalização da maconha. Mas como podemos pensar o caso de drogas como o crack, ou até como o ecstasy (MDMA), que, aliás, em São Paulo vem sendo demonizado e perseguido maciçamente pela polícia? Como fica essa questão das drogas fortes e drogas leves, na medida em que você falou na legalização das drogas?



GILBERTO VELHO – Acho que em princípio é legalização das drogas, o que obviamente implica em distinção das diferentes drogas, e como pode se lidar com cada droga. Nenhuma mais ilegal. Obviamente vai implicar em diferenciar a maconha da cocaína, a cocaína do ecstasy, do ecstasy do crack. Isso terá que ser feito através de um diálogo realmente sério, partindo do diálogo com os usuários, não é só com cientistas trancados em seus laboratórios. Um trabalho científico, mas de diálogo com os usuários. Tornar acessível uma quantidade de cada droga a um usuário sem que isso implique numa ilegalidade. Agora, se o crack especificamente pode ser legalizado, não sei, tenho minhas dúvidas, possivelmente não. Tem uma ou outra droga que talvez não possa ser legalizada, mas como princípio básico deve se legalizar para garantir, inclusive, a qualidade do que está sendo vendido, porque muitas vezes o que está sendo vendido não é cocaína, por exemplo. Agora, existe uma questão antropológica mais ampla, mais funda, que percorre todo esse tema e que já conversamos, que é a alteração do estado de consciência. Se toda a sociedade tem, por um lado, situações e contextos de alteração do estado de consciência, existe sempre, por outro lado, o temor da alteração do estado de consciência. Então, o uso de drogas, principalmente no mundo contemporâneo, ameaça na medida em que pode ser um sinal de perda de controle. No meu artigo sobre acusações eu falo especificamente disso.



MAURÍCIO FIORE – É isso que mais se teme?



GILBERTO VELHO – Eu acho que existe muita ambigüidade. Por um lado uma pessoa, o próprio usuário, pode querer se aventurar e ter uma experiência mais ousada de descobrir coisas, mas por outro lado ele tem medo de perder o controle, acho que as famílias podem ter medo que eles percam o controle e o poder público vai ter medo que ele perca o controle. Vai ter toda uma discussão sobre o poder, Foucault...



MAURÍCIO FIORE – Eu gosto muito da perspectiva do Foucault, mas estava lembrando agora de Becker e dos “empresários morais”. Claro que no Brasil pode-se falar em “empresários morais”, [21] mas o temor não está localizado apenas em pessoas que têm interesses, ele parece perpassar a sociedade como um todo.



GILBERTO VELHO – Perda de controle, desorganização de projetos, quebra da rotina. Basicamente um embaralhamento dos sistemas de classificação. Esses açorianos que eu estudei, era até curioso, porque eu me lembro de um caso que cito num artigo que está no Projeto e Metamorfose [22]: uma jovem açoriana que tomou ácido com os amigos, mas tomou um pouco mais do que devia, houve alguma falha. Enfim, nada que tivesse causado efeitos terríveis, só que ela ficou muito tempo sob o efeito, então ela voltou, voltou para a casa dos pais. Os pais, os avós portugueses, açorianos todos vestidos de preto, e a menina, que se chamava Catarina, foi, de certa forma, protegida pelo irmão que sabia que ela tinha tomado (ele não tinha tomado aquele dia). Os pais e avós diziam: “A menina Catarina está estranha, está um pouco esquisita a Catarina”, mas ao mesmo tempo ela estava lá, de algum modo interagindo, depois foi para a escola. Obviamente, existem possibilidades de erro de cálculo, de abusos, mas os usuários, em princípio, são os que têm mais noção disso. É claro que isso é diferente, nesse quadro meio iluminista de usuários que eu estou descrevendo, de um uso que é feito por pessoas no morro, que estão armadas e que ficam cheirando pó para ficarem aguerridas. Querem ficar ligadas... é diferente, estão com uma arma na mão. Quer dizer, uma mesma droga pode ser usada num contexto pacífico, numa sociabilidade mais ou menos harmoniosa, e pode ser usada num contexto de conflito, de briga, até de morte e assassinato. “Fulanos assassinaram, mataram e estavam drogados”. Sim, é perfeitamente possível que isso aconteça e é usado dentro desse contexto de agressividade. É um problema muito complicado, não dá para simplificar e dizer “vamos legalizar e tudo estará resolvido”, não é isso. Não sou ingênuo. A discussão sobre legalização é um tema fundamental e não pode ser jogado para debaixo do tapete. Diz-se sempre que isso nunca vai acontecer. Eu acho que, no mínimo, é importante como debate, para discutir coisas muito importantes, muito amplas, que vão além da questão das drogas. Tem a ver com princípios, liberdade individual, do que é cidadania. Eu conheço gerações de usuários regulares de drogas leves, como se costuma chamar, que os pais usavam, os filhos usam e, eventualmente, pais e filhos podem até fazer isso juntos. Não estou dizendo que isso é bom ou ruim, não estou elogiando isso. Estou dizendo que existe. É preciso ver o uso que se faz das chamadas drogas, dos psicoativos, maconha, cocaína, os diferentes usos, e qualificá-los, procurando entendê-los dentro de diferentes contextos e situações. Certamente, a proibição e a desqualificação só pioram tudo. Se não fizermos um esforço de colocar um pouco de luz e dar nomes com mais clareza, com mais precisão, a esses fenômenos, nós não vamos estar progredindo, vamos estar dando voltas o tempo todo.



MAURÍCIO FIORE – Eu teria ainda uma questão que envolve o Núcleo de Estudos Interdisciplinar sobre Psicoativos (NEIP) desde sua fundação que é o papel do intelectual com relação ao seu tema de estudo. Porque o que nos uniu foi uma percepção antiproibicionista. No entanto, eu enxergo o antiproibicionismo como um início, outros enxergam como um fim. Debatemos muito sobre o que devemos fazer: ocupar ou não a cena pública e de que forma? Qual seria, para você, o papel do intelectual nesse caso?



GILBERTO VELHO – Eu acho que são várias frentes. Se você realmente acha isso, estão realmente de acordo com isso, deve-se dizer, não só dizer retoricamente, mas demonstrar de algum modo essa idéia de que a droga em si não é o mal. Os males estão ligados aos usos das drogas, aos diferentes tipos de usos, os possíveis males estão ligados a certos usos das drogas. A droga em si está ligada a um problema mais amplo que é a alteração do estado de consciência, que pode se dar de diversas maneiras, sem ser necessariamente acionado pelo que se chama de droga. Existe uma questão mais geral, que tem a ver com liberdade individual de lidar com o corpo, com o organismo, com o psiquismo, enfim, com a subjetividade. Isso é uma coisa fundamental em termos de direitos humanos, fazer psicanálise, fazer terapia, ter determinadas experiências. Agora, acho que isso é um projeto de longo prazo, existe uma série de outras coisas que podem ser feitas paralelamente em termos de investigação e pesquisa sobre isso tudo, essa variedade de uso, as combinações, as visões de mundo. Estudar os “empresários morais”, estudar os que não fumam, que não cheiram, os que acusam, os que são indiferentes. Qual a visão que se tem na sociedade hoje do uso de drogas? Eu acho que isso é muito importante. Até que ponto é o que está nos jornais? Quais são os grupos sociais que realmente rejeitam o uso de drogas de uma maneira radical? Quais são os mais tolerantes, os que aceitam? Além, obviamente, dos que usam.



MAURÍCIO FIORE – Eu tenho imaginado, com minha pequena experiência na abordagem midiática e médica do tema, a questão das drogas nas sociedades contemporâneas próxima do que Foucault viu como um dispositivo com relação à sexualidade. Você acha essa comparação pertinente, a idéia de que repressão e incitação caminham juntas?



GILBERTO VELHO – O problema é pensar o que é o sujeito. É um poder amplo e difuso, ou temos sujeitos? Mas eu acho que, não tenho a menor dúvida, tem a ver com forças sociais que não podem ser simplesmente identificadas, nominadas, embora isso também exista, existem tendências e forças. Existe uma ambigüidade, uma grande ambigüidade com relação às drogas. Uma coisa que atrai, que fascina ao mesmo tempo assusta, que provoca repulsa e que repele. É interessante, por exemplo, você ter uma noção de como os policiais usam drogas, porque usam. A droga é o reino da ambigüidade, porque atrai, afasta e assusta. Ameaça organizar os esquemas, mas ao mesmo tempo pode ser estimulante, pode ampliar sociabilidades, horizontes, etc. Desde as idéias sobre vantagens artísticas e intelectuais, até sexuais, isso sempre aparece. Existe o contrário, que embota, que emburrece, que vai destruir neurônios, que broxa, que vai deixar impotente, você sempre tem os dois. E você encontra muitas vezes a mesma pessoa dividida entre essas duas perspectivas, uma hora se acha potente, criativo, outra hora se acha emburrecido, perdendo a memória, aí internaliza a acusação. Porque a questão das acusações, que é tão importante, está aí, pode ser diretamente de um acusador para um acusado e o próprio cidadão que não é acusado diretamente, ele pode internamente viver isso e internalizar a acusação.



MAURÍCIO FIORE – Isso me lembra Michel Foucault, mas também Goffman. Essa idéia de que o poder está dentro do próprio “drogado”.



GILBERTO VELHO – E tem a ver com o contexto e com as situações, tem a ver com quem você interage. Se você namora uma menina que tem horror à droga e você fuma maconha vai ser completamente diferente de fumar maconha com a sua namorada, é outra coisa. O que será mais importante, você gosta dela, ela é importante; então, apesar dela não querer que você fume maconha, você quer ficar com ela? Então são negociações da realidade. Os usos das drogas estão ligados a um processo de negociação da realidade. Com quem, aonde, em que situações, que momentos... e nós falamos em álcool e não falamos em tabaco...



MAURÍCIO FIORE – Que, seguindo estimativas da Organização Mundial da Saúde, matou mais que todas as guerras do século XX.



GILBERTO VELHO – Pois é, o tabaco, e aí? É o terreno da irracionalidade mesmo. Agora, legalização não é liberação. Tem que ficar muito claro isso. Tem muita gente que acha que vai ser uma grande festa, não é isso. Legalização vai implicar um tipo de burocratização, é um tipo de controle, mas o mais importante desse momento seria afastar qualquer possibilidade de estar relacionado à criminalidade. É claro que sempre vai ter algum mercado negro, contrabando de algum tipo, mas eu acho que isso seria realmente importante e positivo.



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NOTAS


[1] Tese de doutoramento de Gilberto Velho, Nobres e Anjos: um estudo sobre tóxicos e hierarquia, defendida em 1975, foi publicada em 1998, com o mesmo título, pela Fundação Getúlio Vargas.
[2] A Utopia Urbana foi publicado pela primeira vez em 1973. Foi reeditado diversas vezes, a mais recente delas pela Jorge Zahar Editora, em 2002.
[3] Erving Goffman (1922-1982) foi um dos mais importantes cientistas sociais norte-americanos e fez parte de uma escola sociológica que ficou conhecida com Interacionismo Simbólico. Entre suas principais obras, destacam-se A representação do eu na vida cotidiana (publicado pela Vozes em 2003) e Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada, publicada pela LTC em 1988).
[4] Outro grande representante do Interacionismo Simbólico, o sociólogo Howard Becker (1928-) foi o autor de um pioneiro e importante estudo sobre consumidores de maconha, publicado em Outsiders: studies in the sociology of deviance, publicada pela Free Press em 1973 e parcialmente publicado no Brasil, pela Jorge Zahar Editora em 1977, no livro Uma teoria da ação coletiva, coletânea organizada por Gilberto Velho e Howard S. Becker.
[5] O interacionismo simbólico é o nome pelo qual ficaram mais conhecidos os trabalhos de um conjunto de sociólogos norteamericanos que se concentraram na compreensão dos aspectos simbólicos e subjetivos da ação social. Suas influências teóricas vão da psicologia social de George Mead (1863-1931) à fenomenologia de Alfred Schutz (1899-1959), passando, decisivamente, pela obra do sociólogo alemão Georg Simmel (1858-1918).
[6] A antropóloga Ruth Cardoso é esposa do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que foi presidente do Brasil entre os anos de 1995 e 2002.
[7] Esse artigo foi publicado pela primeira vez no livro A aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social, organizado por Edson Nunes, em 1978 e pulblicado pela Jorge Zahar Editora. Ele consta também da coletânea de artigos de Gilberto Velho denominada Individualismo e Cultura, publicada também pela Zahar em 1981 e reeditada várias vezes, sendo a 7ª em 2004.
[8] Desvio e Divergência: uma crítica da patologia social, foi lançado em 1974 pela Zahar. Sua oitava e mais recente reedição foi em 2003, pela mesma editora.
[9] Revista da área de Ciências Sociais publicada pela Universidade da Califórnia desde 1953.
[10] Esse grupo de autores, reunidos principalmente em torno de Max Gluckman (1991-1975), ficou conhecido como “Escola de Manchester”. Desenvolveram um tipo de pesquisa em antropologia urbana na África Central e Setentrional com base no estudo de redes sociais. Para mais detalhes, ver, entre outros, Antropologia das sociedades Contemporâneas, de Bela Feldman Bianco, publicado pela Editora Global, em 1987 e o prefácio de Peter Fry ao seu mais recente livro, A persistência da raça, publicado pela Civilização Brasileira em 2005).
[11] “Escola de Chicago” ficou conhecida genericamente como um grupo de pesquisadores do Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago, na primeira metade do século XX. Influenciada pela psicologia social, pela fenomenologia e pela sociologia alemã, realizaram pesquisas em meio urbano, notadamente com grupos étnicos ou “desviantes”. A Escola de Chicago impactou decisivamente as Ciências Sociais contemporâneas. Para mais detalhes, ver, além das obras do próprio entrevistado, Estrutura urbana e ecologia humana: a escola sociológica de Chicago (1915-1940), de Mario A. Eufrásio, Editora 34, 2004.
[12] História e Cultura: apologia a Tucidides (publicado pela Jorge Zahar Editora em 2006) é o livro mais recente de um dos mais importantes antropólogos contemporâneos, o norte-americano Marshall Sahlins.
[13] O Mundo Funk Carioca, de Hermano Vianna (publicado pela Jorge Zahar Editora em 1997 - editado pela primeira vez em 1988).
[14] Com o título de A Erva do Diabo, foi publicado no Brasil pela primeira vez em 1968, pela Record. Já foi reeditado mais de 30 vezes (a última edição, em 2006, é da Editora Nova Era).
[15] Incluído na coletânea Desvio e Divergência, já citada.
[16] Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande, Jorge Zahar, 2005 (originalmente publicada em 1937).
[17] Witchcraft, Confessions and Accusantions, Routledge, 2004 (originalmente publicada em 1970, ainda sem tradução no Brasil).
[18] Duas categorias de acusação na sociedade brasileira, escrito em 1975, está incluído na coletânea Individualismo e Cultura, já citada.
[19] Incluído no livro Outsiders, já citado.
[20] O entrevistador se refere ao período da Lei Seca norte-americana que proibiu a produção, comércio e consumo de álcool em 1920 e permaneceu em vigor até o início da década de 1930.
[21] “Empresários morais” foi a expressão utilizada por Howard Becker para denominar um conjunto de setores da sociedade norte-americana que ocupava o especo público e pressionava o Estado por controles mais rígidos sobre consumo e venda de drogas.
[22] Trajetória individual e campo de possibilidades está incluído na coletânea de artigos do entrevistado, denominada Projeto e Metamorfose: antropologia das sociedades complexas, publicado pela Jorge Zahar Editora em 2003.



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*Publicado em LABATE, Beatriz Caiuby... [et al.], (orgs.). Drogas e cultura: novas perspectivas. Salvador: UDUFBA, 2008.



Disponível em http://www.cultura.gov.br/site/wp-content/uploads/2010/03/drogas_e_cultura.pdf